Salmo 132/131
Neste Salmo, também ele um Cântico das Subidas, um Salmo Gradual, o peregrino recorda ao Deus de Israel um dado capital no caminho de fé do Povo santo: a promessa que o Eterno fez a Davi e à sua Casa, isto é, à sua dinastia. Essa promessa feita ao rei não é uma realidade meramente individual, em benefício de Davi e de sua prosperidade, mas trata-se de uma bênção para todo o povo de Israel. É assim: nas Escrituras Santas, na história do Povo de Deus, nenhuma promessa, nenhum dom, tem um sentido e um escopo somente pessoais. Todos os dons do Altíssimo, por mais pessoais que sejam, são para a realização do plano salvífico de Deus e, portanto, para o salvação e a vida de todos.
“Lembra-Te, Senhor de Davi,
de todas as suas fadigas,
como ele jurou ao Senhor,
ao Poderoso de Jacó fez um voto:
'Não entrarei sob o teto de minha casa,
não subirei ao leito do meu repouso,
não darei sono aos meus olhos,
nem descanso às minhas pálpebras,
enquanto não achar um lugar para o Senhor,
uma morada pera o Poderoso de Jacó”.
O texto começa com o memorial: pede que o Senhor lembre, recorde. Na verdade, segundo a mentalidade da Sagrada Escritura, para Deus, recordar é conservar na existência. Quando Deus esquece, aquilo que por Ele foi esquecido deixa de existir, torna-se pobre nada, volta ao pó, à inexistência! O memorial, o recordar tornando realmente presente, é central na espiritualidade bíblica. Basta pensar na Páscoa judaica, que anualmente faz memorial do Êxodo do Egito e do memorial da Páscoa de Cristo. Assim como cada geração de Israel, ao fazer memorial da Páscoa judaica, deve se considerar tirada do Egito, ela própria, através de cada época, assim também nós, cristãos, ao celebrarmos a Páscoa do Senhor em cada Eucaristia – e de modo particular no solene rito anual – devem ter a consciência de que, pelo Cristo, em Cristo e por Cristo, passamos da velha situação de pecado e vamos, já nesta vida, sendo impregnados da vida eterna, que termos em plenitude na celebração final, na Páscoa da morte, quando, finalmente, passaremos, ou melhor, terminaremos de passar, deste mundo para o Pai. Cada Eucaristia, portanto, é memorial feito diante do Senhor: “Lembra-Te, Pai, do Teu Filho, que na noite em que foi entregue tomou o pão e o vinho e disse: 'É Meu Corpo, é Meu Sangue. Celebrando, pois, o memorial da morte e ressurreição do Teu Filho, nós Te oferecemos o Pão da vida e o Cálice da salvação!'”
“Lembra-Te, Senhor, de Davi!” - Israel e a Igreja renovam sempre este apelo: Israel a caminho para a Jerusalém terrestre; a Igreja, novo Israel, peregrinando para a Jerusalém celeste! Israel antigo, pensando no Davi do passado e esperando o Davi-Messias no futuro; a Igreja, recordando o Davi-Messias-Jesus que já veio e esperando Sua Manifestação final, plena de Glória, quando também o antigo Israel, surpreso, admirado e comovido, haverá de reconhecê-Lo e adorá-Lo como Messias e Filho e Senhor e Deus bendito pelos séculos! Na liturgia cristã, esta constante recordação de Jesus-Messias aparece de modo muito belo e incisivo ao término de cada oração dirigida ao senhor Deus de Israel: tudo suplicamos “por Nosso Senhor Jesus Cristo Vosso Filho na unidade do Espírito Santo”. Toda a vida da Igreja dá-se no memorial do Senhor, no nome do Senhor, confiando no mérito e na graça salvífica do Senhor nosso Jesus Cristo!
Não deixa de ser intrigante que Davi seja considerado um herói, que seja tão querido na consciência de Israel, a ponto de ser invocado como modelo de dedicação da Deus nesta subida... Mas, a subida – não esqueçamos – é precisamente para a Casa de Deus na Cidade de Davi - e, portanto, Cidade do Messias! Davi foi um homem violento. A própria Escritura atesta isto e Deus mesmo o afirma: “Derramaste muito sangue e fizeste grandes guerras” (1Cr 22,8); Davi foi adúltero, infiel a Deus e assassino: adulterou com Betsabéia e covardemente mandou matar seu esposo (cf. 2Sm 11). Como o Senhor Deus pode beneficiar com tantas graças um homem assim? Como pode, logo ele, ser o depositário da bênção messiânica, a ponto de o santo Messias ser um descendente seu? “Lembra-Te, Senhor, de Davi!” - impressionante! Pela lógica do politicamente correto, da nossa justiça humana, Deus ao recordar de Davi, seria para puni-lo, amaldiçoá-lo, eliminar sua lembrança da terra dos vivos! Mas não é assim com o Eterno: Ele não é, não será nunca refém da nossa lógica e do hipócrita e sufocante politicamente correto! O Senhor age com o Coração e perscruta o coração! Davi pecou, Davi errou, Davi, às vezes, foi de uma mesquinhez assustadora e, no entanto, era um homem sincero, de todo coração apaixonado pelo Senhor. Basta recordar quando Natã denunciou o seu pecado com Betsabéia. Imediatamente, sem fingir, sem se esconder, sem procurar desculpas esfarrapadas, o rei cai em si e exclama: “Pequei contra o Senhor!” (2Sm 12,1-13). Esse Davi nunca temeu colocar-se nu, despojado diante do Santo de Israel, como quando dançou diante da Arca e foi duramente recriminado por Micol: “Que bela figura fez hoje o rei de Israel, desnudando-se aos olhares das escravas dos seus servidores, como faria um bufão qualquer!” Davi, com uma humildade de criança em relação a Deus, afirma: “É diante do Senhor que eu danço! Diante do senhor eu vou pulando. Humilhar-me-ei ainda mais, ficarei rebaixado aos meus próprios olhos!” (cf. 2Sm 6,20-22). É este homem espontâneo para com o Senhor, humilde, que de verdade se reconhece pequeno, pecador, pobre, dependente diante do Altíssimo, é a ele que o Senhor amou e escolheu pela simplicidade do seu coração. É tocante a oração que o velho rei faz ao Senhor antes de partir deste mundo: “Eu sei, meu Deus, que Tu examinas os corações e Te comprazes com a sinceridade: foi de coração sincero que Te dediquei todas estas coisas!” (1Cr 29,17). Eis a lógica do Senhor, eis quem Lhe agrada, eis quem é grande aos Seus olhos: quem O ama, quem O procura, quem não pretende justificar-se diante Dele mascarando seu pecado, quem se reconhece pequeno e devedor, indigno de estar na Sua presença! - Recorda-Te, Senhor, de Davi! Recorda-Te do verdadeiro Davi, cravado na cruz por Teu amor! Por causa de Davi, Teu Servo, salva-nos, ó Santo de Israel!
O peregrino suplica ao Senhor que recorde do voto, da promessa que Davi Lhe fez: construir uma Casa para o Santo de Israel – precisamente para esta Casa os pés do Salmista se dirigem agora! Deus aceitou a intenção da oferta de Davi porque nascia da pureza, do amor, da sinceridade do seu coração. Mas, não esqueçamos: Davi é apenas uma profecia, uma figura, uma preparação: é o verdadeiro Davi, o Messias, quem preparará a Casa definitiva para o Senhor. Mas, aprofundemos.
Primeiramente, o Eterno deixa claro que não será Davi quem Lhe edificará uma Casa, mas seu filho, Salomão (SHaLoMoN, o pacífico, o portador do SHaLoM). Davi não foi homem de paz, mas um guerreiro. Pois bem: somente Salomão poderá construir o Templo do Altíssimo, lugar no qual o povo encontrará a paz, o shalom da comunhão com o seu Deus; assim também somente o verdadeiro Salomão, Aquele que é o Príncipe da Paz, o que dá o shalom definitivo, poderá construir o verdadeiro Templo, do qual o de pedra, de Jerusalém, era apenas anúncio e figura profética: “Destruí vós este templo e em três dias Eu o reerguerei” (Jo 2,18b). Podemos perguntar: que significam estas palavras de Jesus? O Templo de Jerusalém era o lugar do encontro do Senhor com o Seu povo, era expressão da aliança sagrada entre Israel e o seu Deus; era habitação da Glória do Eterno, simbolizada naquela nuvem de fumaça que impregnou o Lugar santo quando Salomão o dedicou a Deus (cf. 1Rs 8,10-12). Ora, pelas contínuas infidelidades de Israel e, sobretudo, pela não aceitação de Jesus como Messias, esse Templo já não teria mais razão de ser. O culto que ali era prestado estava se reduzindo a um culto meramente exterior, vazio de uma adoração que realmente brotasse do coração – precisamente como aquela que brotou do coração de Davi: “Foi de coração sincero que Te dediquei todas estas coisas!” (1Cr 22,8). Não sendo lugar do cultor sincero, da escuta humilde e obediente da Palavra do Eterno, o Templo estava sendo destruído no seu sentido profundo. Daí a frase de Jesus: “Estais destruindo este Templo? Podeis destruí-lo; ele é apenas uma figura! Agora destruís o Templo que é figura do Meu corpo, porque vós Me levareis a cruz, macerareis o Meu corpo. Estais fazendo com este Templo o que fareis com aquilo que ele simboliza: o Meu corpo. Mas, Eu reerguerei o verdadeiro Templo, do qual este, de pedra, é apenas um sinal profético!” Assim, o verdadeiro Templo, edificado pelo verdadeiro Salomão, é o próprio corpo morto e ressuscitado do Senhor. Este corpo ressuscitado, cheio da Glória do Espírito Santo, é o verdadeiro e definitivo “lugar” do encontro do homem com Deus, é o “lugar” da nossa paz, do eterno e definitivo shalom: “O castigo que havia de trazer-nos a paz caiu sobre Ele; sim, por Suas feridas fomos curados” (Is 53,5). O corpo morto e ressuscitado do Salvador é o lugar eterno e sacrossanto da nossa reconciliação: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos – judeus e gentios – fez um só, suprimindo em Sua carne a inimizade (...) a fim de criar em Si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz (…) em um só Corpo, por meio da cruz” (Ef 2,14ss). Jesus, o verdadeiro Davi, oferecendo ao Pai com um coração puro o sacrifício de Sua própria existência humana cravada na cruz, preparou um lugar para o repouso do “Poderoso de Jacó”, e foi glorificado pelo Pai, tendo Seu corpo totalmente transfigurado em glória pela ação do Santo Espírito e, agora, é o lugar do encontro com o Deus Santo “em espírito e verdade” (Jo 4,24). Portanto, é no Corpo do Senhor que se encontra a verdadeira paz: Seu corpo no céu, Seu corpo que é a Igreja, Seu corpo que é a Eucaristia!
Também nós, unidos a Cristo, nos tornamos membros desse Corpo do Senhor e, portanto, também nós, templo santo de Deus (cf. 1Cor 6,15-20). Santo Agostinho nos previne: “Queres ser um lugar para o Senhor? Sê humilde, quieto, treme diante das palavras de Deus, e te tornarás aquilo que desejas ser”.
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