Que
é o homem? Toda a corrente filosófica de certo relevo assenta-se numa peculiar
antropologia. Dentre as perguntas que os filósofos fazem, “quem é o homem?”
reveste-se de uma importância crucial. Não seria desatinado afirmar que, de
acordo com a resposta dada, pode-se chegar ao âmago do pensamento de um
filósofo e à forma como encara o mundo.É natural que daí surja o conflito entre
as diferentes visões de humanismos. No entanto, o que chama a atenção e faz por
merecer uma análise mais detida é a constatação de que esse conflito não se
confina ao âmbito acadêmico, mas repercute sensivelmente na vida de cada um.
Que
é o homem? Toda a corrente filosófica de certo relevo assenta-se numa
antropologia peculiar. Dentre as perguntas que os filósofos fazem, a de “quem é
o homem?” reveste-se de uma importância crucial. Não seria desatinado afirmar
que, de acordo com a resposta que ele dê, se pode chegar ao âmago do pensamento
de um filósofo e à forma como encara o mundo.
É natural que daí surja o conflito entre quem defende as diferentes concepções do homem, os diversos humanismos. No entanto, o que chama a atenção e exige uma análise mais detida é a constatação de que esse conflito não se confina ao âmbito acadêmico, mas repercute sensivelmente na vida de cada um.
Se enfocarmos três dos principais humanismos – o cristão, o naturalista e o existencialista – e centrarmos o estudo num único aspecto, o do sentido da vida, os contornos daquilo de que falamos se tornam mais nítidos. Por que essas três filosofias? Porque, nos dias que correm, conscientemente ou não, via de regra as pessoas seguem alguma delas. Por que esse aspecto? Porque, entre tantos possíveis, apresenta a invulgar vantagem de ser ao mesmo tempo transcendental, elucidativo, tormentoso, comprometedor e nem sempre corretamente tratado.
Tufos de feixes fisiológicos
O humanismo naturalista pode ser entendido como uma miscelânea de escolas afins: cientificismo, materialismo dialético, psicanálise, behaviorismo, evolucionismo... Todas possuem em comum vários postulados famosos: as ciências naturais são as únicas que merecem crédito, somente o conhecimento empírico pode explicar o ser humano, deve-se depositar uma esperança fiducial em que o avanço tecnológico aperfeiçoará e imortalizará o homem, o cérebro e todo o psiquismo são apenas matéria altamente evoluída, o Homo sapiens nada mais é do que um animal dito “superior”. Julian Huxley, no seu livro Evolution, escrevia em 1942: “A evolução é um produto de forças cegas, exatamente como a queda de uma pedra na terra ou o fluxo e o defluxo das marés”. Aceitar valores absolutos e a sua personificação em Deus seria um erro dos homens. O centro da nova religião? O humanismo evolucionista. O homem ainda haverá de multiplicar as suas forças inexploradas.
Moral? Ora, o que é a moral? Os novos tempos assistem, ao casamento de quatro pares de homossexuais na Holanda como se fosse a coisa mais natural do mundo, enquanto protestam veementemente contra o noivado do herdeiro daquele país com uma bela Argentina, que cometeu a “aberração” de ser filha de um ex-ministro da ditadura de Jorge Videla(1)...
Não pode haver moral nem travas para o humanóide terráqueo, um genuíno elo da cadeia cósmica. Quem assistiu ao filme Missão: Marte dificilmente esquecerá a passagem em que o alienígena mostra aos humanos as cenas da sua origem: parte uma nave de Marte para a Terra, cai no mar, os seus tripulantes vão evoluindo em diversas espécies, uma delas torna-se humana, volta a Marte, e todos vivem felizes para sempre na fraternidade sideral. Nisto acredita piamente esta geração que – na feliz expressão de Alejandro Llano – padece de “anorexia cultural”.
Essa concepção antropológica, como é óbvio, repercute no sentido que cada pessoa dá à sua vida. Se o homem não passa de um mero tufo de feixes fisiológicos facilmente manejáveis, viver é estar biologicamente “otimizado”, com muitos prazeres, sem dores, um belo corpo, bem alimentado, bem vestido, descansado. Nada de esforços inúteis. O que importa é como os outros o vêem, apreciam e invejam. Basta a fachada. A glória está em que se aparece na coluna social.
Sufocado pelo tédio
Mas passemos da alegria oca do naturalismo ao ambiente cinzento e rarefeito do humanismo existencialista de Jean-Paul Sartre. Aqui nada se sabe sobre a essência do homem: só poderíamos conhecer a existência. Chegaríamos apenas ao como, não ao quê do ser humano. O existir próprio da pessoa seria condicionado pela realização de si mesma no mundo histórico, pela situação concreta em cada momento.
Essa realização estaria ligada à liberdade, tal como é entendida pelos existencialistas: um valor absurdamente onipotente. Sartre estava encantado com o Calígula de Albert Camus: era o seu protótipo de homem livre. Louco lúcido, estranho à verdade e à justiça, monstro sanguinário que condena todos os seus súditos à tortura e à morte, comprovando assim o seu poder. Era a seguinte a sua cantilena enquanto estrangulava a amante Caesonia: “Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, comparado com o qual o do criador parece um arremedo. Ser feliz é isto. É isto a felicidade, esta insuportável libertação, este universal desdém, o sangue, o ódio à minha volta. A alegria desmedida do assassino impune, esta lógica implacável que tritura vidas humanas, que te tritura, Caesonia, para tornar enfim perfeita a solidão eterna que desejo” (2).
O existencialismo exige que cada qual tenha um projeto para si mesmo. Não pode haver escala alguma de valor universal. Só o existir pessoal revelaria a lei das próprias decisões. Não se admite a norma moral universal porque não se conhece a essência humana.
O que resta para orientar a vida? Qual o balanço dessa filosofia opressiva? No dizer do seu arauto-mor(3), a náusea, a abundância pasmada, a sonolência, a má digestão, beber sem sede, toneladas de sujidade viscosa, o mundo sufocado pelo tédio, “nascer sem razão, prolongar-se por fraqueza, morrer ao acaso”. A vida não tem outro sentido que o nada. Para citar um exemplo dessa experiência nadificante, há o hipotético encontro marcado pelo protagonista com Pedro num café. Pedro não está. O protagonista olha para o interior do café, e tudo – as pessoas que lá se encontram, as mesas, as bebidas, a fumaça dos cigarros, o barulho de vozes e risadas –, tudo ali é nada. Pedro não veio. Pedro é nada. O sujeito que marcou o encontro também é nada(4).
Resta o desejo alucinante de ser deus, porém um deus oni-impotente, oni-ignorante e oniausente. E a decepção ao constatar que a liberdade certamente é limitada, a começar pelo “somos livres para tudo, exceto para não o ser”.
O homem revelado ao homem
Do fundo do poço para a serena reflexão que parte da realidade: o humanismo cristão parte da teoria multissecular do Direito Natural. Agostinho de Hipona já sustentava, no alvorecer da nossa era, que o homem constitui-se de alma e corpo, a alma é imortal (o corpo decai e acaba), existe uma sede insaciável de verdade (de uma verdade imutável) e de eternidade. O realismo aristotélico é lavrado por Tomás de Aquino. Há razão imaterial – abstraímos, refletimos, enxergamos a relação causa-efeito –, vontade livre, sentimentos, paixões, Homo faber, Homo ludens.
O humanismo cristão não é pré-fabricado, mas aberto: avança rumo à essência do ser humano, ouvindo o que têm a dizer todos os que escreveram a cultura, mesmo os naturalistas e os existencialistas. Heródoto conta o heroísmo de Leônidas em Termópilas; Plutarco fala do Alexandre vencedor das mulheres persas – mais difíceis de combater, na sua inebriante beleza, do que os homens...; o Rei Artur, na narração de John Steinbeck, entedia-se num dia plúmbeo; Pedro Abelardo arrepende-se dos seus amores ilícitos com Heloísa; Tolstói escreve a clássica passagem sobre a autoconfiança entre os povos; e o inesquecível Holden Caulfield, o apanhador no campo de centeio, monologa como qualquer adolescente que pulula por aí. Em cada um desses trechos, surgem os mesmos personagens com quem se convive nas ruas das grandes cidades ou a respeito dos quais se ouvem notícias, neste início de milênio. Idênticos sonhos, defeitos, ambições de grandeza, medos. A mesma essência.
O ser humano é social. A liberdade não é ilimitada, uma vez que ninguém está só sobre a terra, além de que a própria liberdade tem um sentido: fazer o bem; liberdade que se aperfeiçoa praticando o bem. Aspira-se à felicidade, felicidade que é plenitude – perfeição, ideal de vida boa (vita bona no sentido moral, não a “boa vida” indolente), vida bem conseguida –, que pressupõe uma certa medida de bens, também materiais (família estruturada, moderada quantidade de riquezas, bons amigos, justa fama, honra, boa saúde, contemplação da verdade, prática da virtude, amar e ser amado, servir...). A felicidade diz respeito primariamente ao futuro (J. Marías). A vida é tarefa, realização: tem sentido quando pressupõe que há uma tarefa a cumprir, algo que valha a pena, de que desfrutaremos com o maior número possível de semelhantes.
Vigora a inabalável convicção de que, ao lado dessa visão filosófica do mundo, existem experiências longamente vividas – dois milênios de cristianismo – e, o que é mais valioso, verdades reveladas que completam e dão fundamento ao genuíno humanismo. Dentre estas últimas, destaca-se a certeza de que o homem foi criado de acordo com umas regras que devem ser observadas, e de que tudo se decompõe quando, cegado pelo sereis como deuses, infringe essas normas. Imediatamente surge uma ruptura, a humanidade faz-se centro de si mesma, vai-se desarraigando da própria natureza, e se embrutece, avilta-se. Em determinado momento histórico, felizmente, surge e ressurge a esperança: o Verbo – por quem todas as coisas, inclusive as citadas normas, foram criadas – assume a natureza humana e a revela ao próprio homem.
Rasto de bem
Todas as idéias expostas visam a algo mais do que puras considerações filosóficas, às quais talvez não sejamos dados, nós os comuns mortais. Não é trivial que uma pessoa imersa nos afazeres alucinadamente prementes do cotidiano possa dedicar-se a escolher qual humanismo seguirá. Porém, o que se pretende é desembocar numa consideração muito simples: se alguém procura sinceramente a felicidade, a verdade, o bem e a beleza, há de ter em mente que só os conseguirá se for coerente com o seu modo de ser. Não o modo de ser da massa, nem muito menos o apregoado por certos meios de comunicação. Mas sim aquele conferido pela sua natureza humana, o seu “código genético moral”, que desemboca no reconhecimento da dignidade da pessoa e no respeito por ela, em seguir a consciência bem formada e em deixar um rasto de bem ao longo da passagem pela terra.
Paulo Oriente-Franciulli é Mestre em Direito Civil pela UFRJ e foi professor da Universidade Federal Fluminense, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Estudioso de História e Filosofia, é co-autor de O anticristo: mito ou profecia? e autor de O milagre de Calanda.
(1) Aceprensa, n. 55/01, págs. 3-4.
(2) Albert Camus, Caligula, Gallimard, Paris, 1945, pág. 212.
(3) Jean-Paul Sartre, La nausée, 33ª ed., Gallimard, Paris, 1938, págs. diversas.
(4) Jean-Paul Sartre, L’être et le néant, 2ª ed., Gallimard, Paris, 1943, pág. 45
É natural que daí surja o conflito entre quem defende as diferentes concepções do homem, os diversos humanismos. No entanto, o que chama a atenção e exige uma análise mais detida é a constatação de que esse conflito não se confina ao âmbito acadêmico, mas repercute sensivelmente na vida de cada um.
Se enfocarmos três dos principais humanismos – o cristão, o naturalista e o existencialista – e centrarmos o estudo num único aspecto, o do sentido da vida, os contornos daquilo de que falamos se tornam mais nítidos. Por que essas três filosofias? Porque, nos dias que correm, conscientemente ou não, via de regra as pessoas seguem alguma delas. Por que esse aspecto? Porque, entre tantos possíveis, apresenta a invulgar vantagem de ser ao mesmo tempo transcendental, elucidativo, tormentoso, comprometedor e nem sempre corretamente tratado.
Tufos de feixes fisiológicos
O humanismo naturalista pode ser entendido como uma miscelânea de escolas afins: cientificismo, materialismo dialético, psicanálise, behaviorismo, evolucionismo... Todas possuem em comum vários postulados famosos: as ciências naturais são as únicas que merecem crédito, somente o conhecimento empírico pode explicar o ser humano, deve-se depositar uma esperança fiducial em que o avanço tecnológico aperfeiçoará e imortalizará o homem, o cérebro e todo o psiquismo são apenas matéria altamente evoluída, o Homo sapiens nada mais é do que um animal dito “superior”. Julian Huxley, no seu livro Evolution, escrevia em 1942: “A evolução é um produto de forças cegas, exatamente como a queda de uma pedra na terra ou o fluxo e o defluxo das marés”. Aceitar valores absolutos e a sua personificação em Deus seria um erro dos homens. O centro da nova religião? O humanismo evolucionista. O homem ainda haverá de multiplicar as suas forças inexploradas.
Moral? Ora, o que é a moral? Os novos tempos assistem, ao casamento de quatro pares de homossexuais na Holanda como se fosse a coisa mais natural do mundo, enquanto protestam veementemente contra o noivado do herdeiro daquele país com uma bela Argentina, que cometeu a “aberração” de ser filha de um ex-ministro da ditadura de Jorge Videla(1)...
Não pode haver moral nem travas para o humanóide terráqueo, um genuíno elo da cadeia cósmica. Quem assistiu ao filme Missão: Marte dificilmente esquecerá a passagem em que o alienígena mostra aos humanos as cenas da sua origem: parte uma nave de Marte para a Terra, cai no mar, os seus tripulantes vão evoluindo em diversas espécies, uma delas torna-se humana, volta a Marte, e todos vivem felizes para sempre na fraternidade sideral. Nisto acredita piamente esta geração que – na feliz expressão de Alejandro Llano – padece de “anorexia cultural”.
Essa concepção antropológica, como é óbvio, repercute no sentido que cada pessoa dá à sua vida. Se o homem não passa de um mero tufo de feixes fisiológicos facilmente manejáveis, viver é estar biologicamente “otimizado”, com muitos prazeres, sem dores, um belo corpo, bem alimentado, bem vestido, descansado. Nada de esforços inúteis. O que importa é como os outros o vêem, apreciam e invejam. Basta a fachada. A glória está em que se aparece na coluna social.
Sufocado pelo tédio
Mas passemos da alegria oca do naturalismo ao ambiente cinzento e rarefeito do humanismo existencialista de Jean-Paul Sartre. Aqui nada se sabe sobre a essência do homem: só poderíamos conhecer a existência. Chegaríamos apenas ao como, não ao quê do ser humano. O existir próprio da pessoa seria condicionado pela realização de si mesma no mundo histórico, pela situação concreta em cada momento.
Essa realização estaria ligada à liberdade, tal como é entendida pelos existencialistas: um valor absurdamente onipotente. Sartre estava encantado com o Calígula de Albert Camus: era o seu protótipo de homem livre. Louco lúcido, estranho à verdade e à justiça, monstro sanguinário que condena todos os seus súditos à tortura e à morte, comprovando assim o seu poder. Era a seguinte a sua cantilena enquanto estrangulava a amante Caesonia: “Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, comparado com o qual o do criador parece um arremedo. Ser feliz é isto. É isto a felicidade, esta insuportável libertação, este universal desdém, o sangue, o ódio à minha volta. A alegria desmedida do assassino impune, esta lógica implacável que tritura vidas humanas, que te tritura, Caesonia, para tornar enfim perfeita a solidão eterna que desejo” (2).
O existencialismo exige que cada qual tenha um projeto para si mesmo. Não pode haver escala alguma de valor universal. Só o existir pessoal revelaria a lei das próprias decisões. Não se admite a norma moral universal porque não se conhece a essência humana.
O que resta para orientar a vida? Qual o balanço dessa filosofia opressiva? No dizer do seu arauto-mor(3), a náusea, a abundância pasmada, a sonolência, a má digestão, beber sem sede, toneladas de sujidade viscosa, o mundo sufocado pelo tédio, “nascer sem razão, prolongar-se por fraqueza, morrer ao acaso”. A vida não tem outro sentido que o nada. Para citar um exemplo dessa experiência nadificante, há o hipotético encontro marcado pelo protagonista com Pedro num café. Pedro não está. O protagonista olha para o interior do café, e tudo – as pessoas que lá se encontram, as mesas, as bebidas, a fumaça dos cigarros, o barulho de vozes e risadas –, tudo ali é nada. Pedro não veio. Pedro é nada. O sujeito que marcou o encontro também é nada(4).
Resta o desejo alucinante de ser deus, porém um deus oni-impotente, oni-ignorante e oniausente. E a decepção ao constatar que a liberdade certamente é limitada, a começar pelo “somos livres para tudo, exceto para não o ser”.
O homem revelado ao homem
Do fundo do poço para a serena reflexão que parte da realidade: o humanismo cristão parte da teoria multissecular do Direito Natural. Agostinho de Hipona já sustentava, no alvorecer da nossa era, que o homem constitui-se de alma e corpo, a alma é imortal (o corpo decai e acaba), existe uma sede insaciável de verdade (de uma verdade imutável) e de eternidade. O realismo aristotélico é lavrado por Tomás de Aquino. Há razão imaterial – abstraímos, refletimos, enxergamos a relação causa-efeito –, vontade livre, sentimentos, paixões, Homo faber, Homo ludens.
O humanismo cristão não é pré-fabricado, mas aberto: avança rumo à essência do ser humano, ouvindo o que têm a dizer todos os que escreveram a cultura, mesmo os naturalistas e os existencialistas. Heródoto conta o heroísmo de Leônidas em Termópilas; Plutarco fala do Alexandre vencedor das mulheres persas – mais difíceis de combater, na sua inebriante beleza, do que os homens...; o Rei Artur, na narração de John Steinbeck, entedia-se num dia plúmbeo; Pedro Abelardo arrepende-se dos seus amores ilícitos com Heloísa; Tolstói escreve a clássica passagem sobre a autoconfiança entre os povos; e o inesquecível Holden Caulfield, o apanhador no campo de centeio, monologa como qualquer adolescente que pulula por aí. Em cada um desses trechos, surgem os mesmos personagens com quem se convive nas ruas das grandes cidades ou a respeito dos quais se ouvem notícias, neste início de milênio. Idênticos sonhos, defeitos, ambições de grandeza, medos. A mesma essência.
O ser humano é social. A liberdade não é ilimitada, uma vez que ninguém está só sobre a terra, além de que a própria liberdade tem um sentido: fazer o bem; liberdade que se aperfeiçoa praticando o bem. Aspira-se à felicidade, felicidade que é plenitude – perfeição, ideal de vida boa (vita bona no sentido moral, não a “boa vida” indolente), vida bem conseguida –, que pressupõe uma certa medida de bens, também materiais (família estruturada, moderada quantidade de riquezas, bons amigos, justa fama, honra, boa saúde, contemplação da verdade, prática da virtude, amar e ser amado, servir...). A felicidade diz respeito primariamente ao futuro (J. Marías). A vida é tarefa, realização: tem sentido quando pressupõe que há uma tarefa a cumprir, algo que valha a pena, de que desfrutaremos com o maior número possível de semelhantes.
Vigora a inabalável convicção de que, ao lado dessa visão filosófica do mundo, existem experiências longamente vividas – dois milênios de cristianismo – e, o que é mais valioso, verdades reveladas que completam e dão fundamento ao genuíno humanismo. Dentre estas últimas, destaca-se a certeza de que o homem foi criado de acordo com umas regras que devem ser observadas, e de que tudo se decompõe quando, cegado pelo sereis como deuses, infringe essas normas. Imediatamente surge uma ruptura, a humanidade faz-se centro de si mesma, vai-se desarraigando da própria natureza, e se embrutece, avilta-se. Em determinado momento histórico, felizmente, surge e ressurge a esperança: o Verbo – por quem todas as coisas, inclusive as citadas normas, foram criadas – assume a natureza humana e a revela ao próprio homem.
Rasto de bem
Todas as idéias expostas visam a algo mais do que puras considerações filosóficas, às quais talvez não sejamos dados, nós os comuns mortais. Não é trivial que uma pessoa imersa nos afazeres alucinadamente prementes do cotidiano possa dedicar-se a escolher qual humanismo seguirá. Porém, o que se pretende é desembocar numa consideração muito simples: se alguém procura sinceramente a felicidade, a verdade, o bem e a beleza, há de ter em mente que só os conseguirá se for coerente com o seu modo de ser. Não o modo de ser da massa, nem muito menos o apregoado por certos meios de comunicação. Mas sim aquele conferido pela sua natureza humana, o seu “código genético moral”, que desemboca no reconhecimento da dignidade da pessoa e no respeito por ela, em seguir a consciência bem formada e em deixar um rasto de bem ao longo da passagem pela terra.
Paulo Oriente-Franciulli é Mestre em Direito Civil pela UFRJ e foi professor da Universidade Federal Fluminense, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Estudioso de História e Filosofia, é co-autor de O anticristo: mito ou profecia? e autor de O milagre de Calanda.
(1) Aceprensa, n. 55/01, págs. 3-4.
(2) Albert Camus, Caligula, Gallimard, Paris, 1945, pág. 212.
(3) Jean-Paul Sartre, La nausée, 33ª ed., Gallimard, Paris, 1938, págs. diversas.
(4) Jean-Paul Sartre, L’être et le néant, 2ª ed., Gallimard, Paris, 1943, pág. 45
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