O tomismo hoje.
Por Prof.
Pe. João Batista de A. Prado Ferraz Costa
Outro dia um aluno do curso de filosofia perguntou-me se a ciência moderna anulava ou contradizia alguma das teses da filosofia de Santo Tomás, um pensador medieval.
Outro dia um aluno do curso de filosofia perguntou-me se a ciência moderna anulava ou contradizia alguma das teses da filosofia de Santo Tomás, um pensador medieval.
A referida pergunta procede e versa sobre um
assunto a ser investigado. Mas deve-se dizer que, para analisar tal problema, é
preciso logo de princípio fazer uma distinção entre o campo estrito da
metafísica e outros tratados filosóficos. Sendo a metafísica o estudo do ser
enquanto ser, separado das qualidades sensíveis e da quantidade (terceiro grau
de abstração), não compete às ciências físicas imiscuir-se em seu terreno e
querer aplicar aí seu método de investigação. Deus, Ato Puro, Ser Absoluto,
Causa Primeira, nunca será objeto de investigação científica, se por ciência se
entendem apenas as ciências empíricas. A legitimidade da metafísica consiste
justamente em provar que as outras ciências são subalternas em relação a ela na
medida em que suas conclusões e respostas não são exaustivas, mas, ao contrário,
sempre se limitam àquilo que é contingente e não se explica por si mesmo e, por
conseguinte, é dependente do Ser Necessário.
Como se sabe, há três graus de abstração. O
primeiro grau deixa de lado as características particulares dos fatos e
fenômenos, considerando as naturezas universais e as leis universais dos
fenômenos físicos. Neste primeiro grau de abstração fundam-se as ciências
experimentais. O segundo grau de abstração deixa de lado as propriedades físicas
e sensíveis das coisas e nelas só lhe interessam a quantidade e o cálculo entre
as quantidades. É a abstração própria da matemática. O terceiro grau de
abstração deixa de lado as quantidades como propriedades físicas e sensíveis,
considerando nas coisas apenas o que nelas há de primeiro, o mais fundamental,
isto é, o ser.
O pensador tomista francês, Jean Daujat,
observa que cada um desses três graus de abstração tem sua maneira própria de
conceber e raciocinar e que se pode cair em graves confusões se se passa de um a
outro sem atenção. Daujat dá como exemplo a noção de causalidade que não é
absolutamente a mesma para o físico e para o metafísico. Para o físico, a
causalidade é uma regularidade na sucessão dos fenômenos sensíveis: ele dirá que
um fenômeno A é a causa de um fenômeno B se fenômeno A é sempre acompanhado ou
seguido pelo fenômeno B. Para o metafísico, a causalidade é uma dependência na
existência: ele dirá que A é causa de B se o ser de B depende do ser de A ( Cf.
Jean Daujat, Y a-t-il une verité?, Paris, Pierre Téqui Éditeur, 2011).
Na referida obra Daujat explica também que pode
haver ciências mistas, que participam de dois graus de abstração. É o caso da
física moderna que é materialmente física e formalmente matemática.
Para resolver a questão que nos ocupa, a
relação entre a metafísica de São Tomás e as ciências empíricas modernas, é útil
ainda acrescentar outra consideração de Daujat atinente à pretensão do
neopositivismo de recusar a legitimidade da física moderna, que não obteria um
conhecimento objetivo do mundo mas se reduziria a um método matemático para
organizar a ação do homem no mundo. Diz Daujat que o conhecimento das
quantidades medidas é verdadeiro. E este conhecimento limitado ao quantitativo é
importante, pois, sendo a quantidade o acidente fundamental das substâncias
corpóreas e o sujeito de seus outros acidentes, o conhecimento quantitativo
poderá fornecer as indicações para um conhecimento ontológico que os atinja em
seu ser mesmo, de modo que o sábio pode passar de um conhecimento a outro sem
dar-se conta (o. c. p. 150-151).
Portanto, como se vê, o questionamento da
validade da metafísica tomista envolve, na verdade, o questionamento da ciência
moderna. O cientificismo, inimigo da metafísica, não destrói apenas a filosofia
primeira mas toda a ciência.
Contudo, cumpre dizer que as investigações
filosóficas de Santo Tomás em outras áreas, como, por exemplo, na antropologia e
na cosmologia, podem, eventualmente, oferecer alguma dificuldade ou exigir
outras explicações, estimulando os estudiosos mais competentes a aprofundar suas
pesquisas por meio de um diálogo fecundo com as diversas ciências
contemporâneas. Aliás, o papa Leão XIII, na famosa encíclica Aeterni Patris, de
1879, em que recomenda um retorno ao estudo de Santo Tomás, diz que, se na
antiga escolástica houver alguma coisa inconciliável com o avanço da ciência
moderna, não seja tal ensinamento reproposto. A propósito de semelhante problema
o respeitado professor de filosofia, Henrique Cláudio de Lima Vaz SJ, em seu
auto-retrato filosófico, conta que em seu tempo de seminário havia uma
interessante disciplina voltada justamente para esse escopo de investigar os
pontos de contato entre a filosofia e a ciência moderna.
Da minha parte, posso dizer que, dirigindo os
seminários da disciplina Síntese Filosófica, que visa precisamente a estabelecer
um confronto entre a filosofia perene e as correntes modernas de pensamento,
pude observar em um trabalho apresentado por um aluno que Santo Tomás, aplicando
ao problema da união corpo e alma no homem a teoria do hilemorfismo, não só dá
uma reposta muito mais satisfatória que o dualismo cartesiano, mas também se
coaduna com as investigações mais recentes da neurociência, que tanta empolgação
tem causado. Com efeito, embora rejeitando o emprego do conceito clássico de
“alma” como princípio vital e forma substancial que assegura ao homem a sua
unidade e seu único ato de ser, e apesar de um emprego impróprio do conceito de
consciência em lugar de alma, vários neurocientistas, não obstante ressaibos de
materialismo, querem dizer quase a mesma coisa que disse Santo Tomás na
explicação do homem com base na unidade substancial entre corpo e alma. Se
tiverem boa vontade, esses cientistas, estudando Santo Tomás, hão de concluir
que o sistema nervoso superior não pode explicar cabalmente a consciência
humana, mas é preciso admitir uma forma substancial.
Entretanto, não é apenas a obra de Santo Tomás
de Aquino que se apresenta de uma atualidade espantosa, mas também sua vida
santa e admirável constitui uma lição atualíssima. Tendo vivido no século XIII,
em uma sociedade estamental, pertencente à alta nobreza, foi educado, como se
sabe, por monges beneditinos. Naqueles tempos, a vida religiosa abraçada dentro
de mosteiros (que eram feudos rendosos) ou nas aristocráticas congregações de
cônegos regulares podia reverter em benefício e prestígio de toda estirpe. Por
isso, a decisão de Santo Tomás de ingressar em uma ordem mendicante, a Ordem dos
Pregadores, fundada por São Domingos Gusmão, a qual era ainda vista com certa
desconfiança, foi um ato de virtude do nosso santo e frustrou interesses
mesquinhos de alguns de seus familiares. Em nosso mundo de hoje, mais que nunca
dominado pela ambição de bens materiais, a vida santa do Doutor Angélico,
inteiramente dedicada à busca e ao ensino da sabedoria, deve ser meditada e
imitada.
Muito mais poderia ser dito sobre santo Tomás.
Que o seja por quem tem mais competência. Ficam aqui estas mal traçadas linhas à
guisa de breve panegírico e como um testemunho de quem tenta abeberar-se nas
fontes límpidas do Doutor Comum da Igreja para manter a integridade da fé. Não é
à toa que a Igreja determina, no cânon 252 do Código de Direito Canônico, que os
estudos teológicos sejam desenvolvidos à luz da doutrina de Santo Tomás ( S.
Thoma praesertim magistro). Sem a luz do tomismo, toda a teologia, inclusive o
magistério eclesiástico, perde seu rigor e precisão, reduzindo-se a um discurso
livre em que cada um dirá o que quer. Não é à toa tampouco que o papa Leão XIII,
querendo, nas pegadas de seu predecessor Pio IX, restaurar sociedade segundo
princípios cristãos, viu que tal empresa era inútil sem a restauração da
inteligência cristã e, por isso, escreveu a encíclica Aeterni Patris.
Anápolis, 10 de
agosto de 2013.
Festa de São
Lourenço, diácono e mártir
Do site Santa Maria das Vitórias, disponível em
http://santamariadasvitorias.org/qual-o-valor-do-tomismo-hoje
vozdaigreja
Do site Santa Maria das Vitórias, disponível em
http://santamariadasvitorias.org/qual-o-valor-do-tomismo-hoje
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