É
difícil que haja uma pergunta mais importante do que essa: “O que é o Bem?; Que
coisas são boas?” No mais profundo de si mesmo, o Homem abriga o desejo de ser
bom, de fazer coisas boas: quando escolhe o mal é porque ficou ofuscado pela
pequena parte de bem com que o mal se reveste. Deus – Bem infinito, que faz o
bem e o põe em toda criatura – é Quem dá a todas as suas obras essa capacidade
de atuar na direção do bem e, assim, incrementá-lo.
Todos
temos uma espécie de instinto para descobrir o bem. Sabemos que “o bem é bom” e
que “o mal é mau”. Na prática, porém, muitas vezes aparece o problema: “isto é
bom?”, “é bom fazer isto?”. A resposta nem sempre é imediata ou certa: às vezes
pode exigir um longo e árduo estudo. Mas sendo tão importante acertar quando
está em jogo a nossa própria bondade, o nosso bem, compreendemos que esse
estudo deve ser rigoroso, científico, de modo que a conclusão apóie-se em
argumentos sólidos e irrefutáveis.
Assim nasce a ciência que chamamos de Ética (vem se ethos, que em grego quer dizer costume, modo habitual de agir). A Ética investiga aquilo que é bom fazer, para que – fazendo-o – alcancemos a maior perfeição humana possível e, portanto, satisfaçamos os nossos mais profundos desejos, ou seja: alcancemos a felicidade.
Quando se diz que algo “é ético” ou “não é ético”, o que se está dizendo é que é ou não bom. Contudo, embora todos concordemos em afirmar que a nossa conduta deve ser “ética”, nem sempre concordamos sobre se essa ou aquela coisa em concreto é ou não é “ética”. O que para alguns parece ser “ético”, para outros é uma monstruosidade. Assim, por exemplo, alguns afirmam que é “ético” provocar o aborto quando a gravidez resultou de um estupro, enquanto outros dizemos que fazer isso é cometer um dos piores crimes – mais grave até do que o terrorismo –, negando ao não-nascido inocente o direito mais elementar de qualquer pessoa: o direito à vida.
Esse exemplo nos permite entender a enorme importância que tem estarmos esclarecidos sobre o que é e sobre o que não é “ético”: sobre quais coisas são as realmente “boas”. Não é uma questão trivial que possamos deixar para que outros resolvam. Trata-se de uma questão de vida ou morte, e que deve ser encarada com toda a seriedade e rigor.
É possível chegar a um conhecimento certo sobre “o que é bom” – pelo menos em seus aspectos fundamentais – ou estamos condenados a uma eterna dúvida, a meras opiniões sem fundamento racional? Existe um critério objetivo de bondade que nos permita discernir, sem medo de errar, entre o bem e o mal? O bom senso sempre afirmou que sim, mas é conveniente que compreendamos porque, e também porque alguns enxergam as coisas de modo diferente.
É claro que o bem – o que é bom – é assim porque contém alguma perfeição que o torna apetecível, desejável. Aristóteles dizia que “o bem é algo que todos desejam”. Mas por que todos desejamos o bem? Porque vemos nele algo que nos beneficia, algo que “nos faz bem”, que nos aperfeiçoa, que nos melhora, que satisfaz as nossas necessidades, que nos faz mais felizes. Cabe dizer que o bem é uma perfeição que me aperfeiçoa: uma perfeição aperfeiçoadora (essas considerações – tão óbvias que parecem um simples lugar-comum – não são vãs).
O BEM É RELATIVO
Deve-se notar que nem tudo aquilo que aperfeiçoa um determinado sujeito aperfeiçoa igualmente todos os outros. O adubo animal serve como nutriente para as plantas, mas não para os homens. A alfafa é boa, saborosa e sadia: mas para as vacas, não para nós. Portanto é claro que o bem é relativo: é relativo a um sujeito ou a um determinado grupo de sujeitos, mais ou menos numeroso.
Essa “relatividade” do bem levou muitos a pensar que o bem não é algo “objetivo”, isto é: que o bem não está aí fixo, independente do meu pensamento. Cada um poderia considerar como sendo bom “aquilo que lhe pareça”: cada qual seria livre para considerar boa uma coisa ou a coisa oposta, decidindo por conta própria sobre o bem e o mal. Cada um seria – afirma-se – um “criador de valores”, já que a bondade das coisas não estaria nelas mesmas, mas na minha subjetividade, no meu pensamento, nos meus desejos ou opiniões. Esse é um grave erro no qual muitos incorrem, mas esse erro não é novo: é tão velho quanto a Humanidade. Adão e Eva não quiseram reconhecer que o bem estava onde Deus o tinha posto, pretendendo encontrá-lo onde eles, com sua má vontade, queriam que estivesse.
O BEM É OBJETIVO
Embora o bem seja “relativo” (algo é bom sempre “para alguém”), em termos estritos é a coisa menos subjetiva e opinável que existe. A bondade do ar que respiramos, da água que bebemos, do calor e da luz do sol que nos dá a vida, etc., etc... não é coisa que tenhamos inventado ou criado, não é uma bondade “opinável”: é algo que já está aí, independentemente das nossas avaliações.
De modo similar conhecemos os valores da justiça, da liberdade, da paz, da fraternidade: valores objetivos que não teria sentido negar. Mesmo se os negasse porque não me apetecem, ainda assim continuariam sendo valiosos para os outros. Essa minha inapetência seria um sintoma claro de alguma doença que tenho no corpo ou na alma.
É também importante notar – ao contrário do que foi muito difundido por certos filósofos – que se uma maçã me apetece, não é porque eu tenha conferido a ela o bom sabor. A maçã não se torna saborosa simplesmente por que sou eu quem a saboreio. Ainda que para outro ela seja insossa – talvez porque ele esteja doente –, a bondade da maçã não é produto da minha subjetividade: é a própria maçã que tem por si mesma a aptidão para causar um bom sabor e uma boa nutrição. Se assim não fosse, alguém poderia encontrar o mesmo sabor no fel ou até no lixo.
Está claro que existem bens e valores objetivos. Mas caberia perguntar se todos os bens são objetivos. A resposta é que de fato todos o são. Isso porque na prática as coisas e as ações humanas, queiramos ou não, sempre aperfeiçoam ou prejudicam: inclusive aquelas que – em teoria – poderiam razoavelmente ser consideradas indiferentes, como por exemplo passear.
Portanto, a “relatividade” do bem não significa que o bem é bom porque a minha vontade assim o deseja, mas que a minha vontade deseja o bem porque ele é bom. A bondade primeiramente está na coisa e só depois pode (ou não) estar no meu capricho, nas minhas opiniões ou nas minhas preferências. O que é bom para mim pode ser mau para outro; por exemplo, um remédio ou um trabalho determinado. Isso não depende do meu parecer. Do que depende então? Depende precisamente daquilo que eu sou, depende do meu ser, e isso já não é um produto da minha vontade, nem uma questão opinável. Embora os defeitos e qualidades que eu possuo agora tenham sido fruto dos meus atos voluntários anteriores, o que eu cheguei a ser, o que eu sou agora, é neste momento independente da minha vontade, e de modo igualmente independente da minha vontade haverá coisas que serão boas ou más para mim.
O bem depende, pois, do ser (do ser real, objetivo, que está aí) e do modo de ser. E se há algo que o Homem nunca poderá deixar de ser é precisamente isso: ser Homem. As características pessoais ou individualizantes próprias de cada um nunca esfumam ou anulam a natureza humana; são, pelo contrário, perfeições (ou defeitos) dessa natureza peculiar que todos compartilhamos: uma natureza que nos permite falar de “gênero humano” ou de “espécie humana”, e também de um bem objetivo comum a toda a Humanidade.
Como vimos, existem bens relativos a pessoas singulares. Mas é igualmente certo que existem bens relativos à natureza humana comum, e portanto relativos a todos e a cada um dos indivíduos da nossa espécie. É por isso que há leis ou normas morais objetivas, universais e permanentes, que afetam todos os homens, em qualquer tempo e lugar. O que prejudica a natureza forçosamente prejudicará a pessoa, porque a pessoa não é alheia à natureza: é o sujeito dessa natureza determinada.
A naturezas diversas correspondem bens diversos. O que é bom para o animal ou para o anjo pode não ser bom para o Homem. Por isso, para sabermos o que é bom para o Homem – para todos e cada um –, é indispensável conhecermos antes a resposta à grande pergunta: O que é o Homem? “Que sou eu, meu Deus? – exclamava Santo Agostinho – A minha essência, qual é?” (1)
A Ética (ciência sobre os bens do Homem) supõe a Antropologia Filosófica (que estuda o que é o Homem). Na História do Pensamento encontram-se éticas diferentes porque há diferentes conceitos sobre o Homem, e portanto diferentes conceitos sobre os bens.
O QUE É O HOMEM?
Para alguns, o Homem nada mais é do que um conjunto de corpúsculos, embora complexo e maravilhoso (Carl Sagan, o famoso cosmólogo norte-americano, por exemplo, dizia isso); muitos o consideram como pura química, ou como mero conjunto de instintos fatalmente determinados, ou como um simples número dentro da espécie zoológica. Todas essas são diferentes manifestações da visão materialista do Homem.
Pelo fato de negar – de modo dogmático, certamente – a realidade da alma espiritual e imortal, todo materialismo torna-se incapaz de conhecer o que o Homem na verdade é, e por esse mesmo motivo também não pode saber o que realmente é bom ou “ético”. Quando um materialista pensa no Homem como um simples animal evoluído – em quem não há nada que não seja redutível a elementos materiais –, não consegue pensar no bem sem reduzi-lo ao que é material e sensitivo; e além disso tenderá a conceder um valor absoluto aos assuntos econômicos. Escapa-lhe o que é mais valioso: o espírito, em que está a imprescindível raiz do entendimento e da vontade livres.
Por isso os termos “liberdade”, “justiça”, “paz”, “amor”, etc. no materialismo carecem de conteúdo humano, confundem-se com as sombras de tais coisas que parecem existir nos animais. O próprio conceito de “pessoa” é esvaziado, ficando o Homem reduzido a um “número” cuja função é servir a “espécie” (chamada de “sociedade”). Se a “espécie” assim o exigir, não haverá nenhum inconveniente em sacrificar o “indivíduo”: poder-se-á com toda paz saqueá-lo, ou trancafiá-lo num hospital psiquiátrico ou eliminá-lo. O que conta é somente o bem da “espécie”, como na Zoologia. Tal é a tremenda conclusão do coletivismo, especialmente o marxista.
Se realmente queremos o que é bom para nós mesmos e para a Sociedade – que está composta não por meros indivíduos, mas por pessoas de valor único e irrepetível –, então temos de ter a honradez de contemplar o Homem em toda sua integridade. Não basta ver somente um corpo dotado de sentidos e instintos. Isso equivale a não ver o Homem, da mesma forma que aquele que vê somente uma das seções – a vertical ou a horizontal – de um cilindro não vê o cilindro: confunde-o com um círculo ou com um quadrado, e pode até chegar à conclusão de que o cilindro é um círculo quadrado, um absurdo, portanto, que só pode existir como uma vã ilusão mental. Pode-se chegar inclusive a negar a possibilidade de existirem cilindros, da mesma forma como foi negado que exista a alma humana imortal. Esquartejou-se o Homem, cortando-o pela metade, até o momento em que o “sábio”, diante da platéia e da mesa de dissecação, sentencia: “como não vejo a alma em parte alguma, ela não existe” (aplausos). O mesmo fez aquele astronauta soviético, que declarou triunfante que Deus não existe porque não viu ninguém lá em cima, no seu passeio pelo espaço.
O Homem é um “cilindro” muito peculiar: é infinito em altura, não tem topo, não tem limite superior, e por isso só uma “seção” totalmente “vertical” é capaz de revelar sua dimensão transcendente à matéria. Mas não é difícil descobrir essa dimensão usando um pouco de bom senso. Mais adiante voltaremos ao assunto. Não deixa de ser certeira aquela frase gráfica de Unamuno, mesmo sendo ele um homem confuso quanto à religião: “o que chamam de espírito parece-me muito mais material (quer dizer “perceptível”, “claramente cognoscível”) do que aquilo que chamamos de matéria; sinto minha alma mais importante e mais sensível que meu corpo”.
Foi dito – e com toda a razão – que o materialismo é o mais curioso esforço jamais feito pelo espírito humano na tentativa de provar a não-existência do espírito humano. Isso porque “só um ser pensante – ou seja: espiritual – pode pôr-se a «demonstrar», mediante argumentos, o materialismo” (2). O materialismo, deslumbrado pela semelhança morfológica entre o Homem e o macaco, confunde os dois. Ocorre aquilo que observa Johannes Torelló: “objetos de estudo essencialmente diferentes, ao serem projetados pelo cientista contra um plano inferior, aparecem-lhe como sendo iguais. Assim, a projeção de uma esfera, a de um cilindro e a de um cone são a mesma: um círculo ambíguo e tentador aos olhos de espíritos simplistas, capazes de concluir que no fundo um cilindro, uma esfera e um cone são realmente a mesma coisa”.
É certo que temos um corpo e uns sentidos que reclamam satisfações para as suas necessidades vitais. Mas antes de qualquer coisa possuímos algo que excede tudo o que procede da matéria: o entendimento, ávido e insaciável de verdade. Já desde criança o homem sadio começa a “exasperar” os adultos com as suas intermináveis perguntas: “Mamãe, o que é isso?”, “para que serve aquilo?”, e sobretudo “por que?”, “por que?”, “por que?”... É que o menino ou a menina está buscando desde já uma resposta última e definitiva, que não remeta a outro “por que”, que seja algo assim como o grande “Porquê” que tudo explique, que seja a Verdade Primeira e a Origem de todas as outras verdades. A criança pergunta por Deus, procura Deus, precisa de Deus desde que sua inteligência desperta para o “uso da razão”. É o que diz a célebre oração de Santo Agostinho: “Criaste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Ti.” (3)
A única coisa capaz de saciar e aquietar o entendimento é o conhecimento de Deus: não um conhecimento qualquer, mas todo o conhecimento de que seja capaz. Somente assim alcança a sua perfeição suprema, a sua plena felicidade.
A vontade, por outro lado, é uma ilimitada capacidade de amar o bem (não “infinita” mas “ilimitada”, porque por muito que ame sempre quer amar mais), que não se conforma com qualquer bem: deseja o ótimo, o máximo bem. Quando a vontade põe o seu amor numa criatura e a possui de algum modo, logo fica satisfeita; mas em seguida percebe que aquilo não é o máximo: que resta um vazio ainda sem preencher, que ainda está longe de alcançar a plenitude de bem e de amor que buscava. Isso porque todos nós – sabendo-o ou não – queremos a Deus, buscamos a Deus, temos fome de Deus como Verdade primeira e Bem infinito, como Sabedoria e Amor plenos: somente nEle – no amoroso conhecimento de Deus – encontra-se a perfeição, a plenitude humana, a felicidade sem sombras. Esse é o nosso fim, o nosso máximo bem comum objetivo.
A FELICIDADE PERFEITA E O BEM SUPREMO
Agora que sabemos – não detalhadamente mas com profundidade – o que é o Homem, sabemos também qual é o seu bem fundamental e indispensável. Independentemente do que eu queira ou pense, do que me apeteça ou do que eu escolha, o meu Bem é Deus. Assim encontramos um critério objetivo de bondade: no mundo, será bom para mim – bom moralmente, bom em sentido “ético” – aquilo que me aproxime de Deus (ou pelo menos não me afaste dEle), e será mau para mim aquilo que me afaste de Deus, ainda que me apeteça. Aquilo que me aproxima de Deus será também uma perfeição do meu ser pessoal; o contrário, aquilo que me afasta dEle, sempre e sem dúvida será prejudicial ao que há de mais íntimo em mim.
Essa é já uma conclusão de suma importância. Mas por outro lado é claro que surge uma nova pergunta: na prática, o que me aproxima de Deus e o que me afasta dEle? A luz natural da razão é um dom que todos recebemos e que nos permite descobrir quais são as exigências fundamentais do ser humano, cujo conjunto é a lei natural, formulada sinteticamente no Decálogo pelo próprio Deus. Assim se entendem bem aquelas palavras de João Paulo II: “A lei moral é a lei do Homem, porque é a lei de Deus”. Com efeito, “a verdade expressa pela lei moral é a verdade do ser, tal como é pensado e querido por Deus que nos criou”. É por isso que “há uma profunda consonância entre a parte mais verdadeira de nós próprios e aquilo que Deus nos manda, apesar de que – usando as palavras do Apóstolo – sinto nos meus membros outra lei que repugna a lei do meu espírito (Rom 7, 22). (4)”
Se em nossa mente não existisse a sombra do pecado original e se a nossa vontade não tivesse sido debilitada, conheceríamos bem a nós mesmos e, conseqüentemente, conheceríamos sem nenhuma dúvida o que é bom: teríamos uma visão clara da lei moral. Acontece que encontrar essa lei nos custa trabalho, até porque também nos custa trabalho vivê-la. Mas Deus, na sua infinita Misericórdia, veio em nosso auxílio – fez-se Homem! – para nos dizer com palavras humanas qual é o caminho que nos faz de verdade homens perfeitos e felizes: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6). E não nos oferece apenas uma felicidade natural: mediante a Sua Encarnação, Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, abriu-nos as portas para nada menos do que a vida íntima de Deus Uno e Trino. Colocou à nossa disposição a Sua própria Felicidade: o máximo, não já relativamente ao Homem, mas em absoluto.
E para que todos os homens possam conhecer facilmente – sem disputas ou dúvidas angustiosas, sem esforços hercúleos – quais são as coisas que nos aproximam de Deus e quais as que nos afastam dEle, fundou a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Dotada de um Magistério autorizado, assistido sempre pelo Espírito Santo – o Espírito da Verdade –, a Igreja é capaz de traçar, a cada momento, o mapa certo e seguro dos caminhos do bem. Temos aí – especialmente os católicos, mas também de algum modo todos os outros – o grande critério, a grande luz, a grande segurança para discernir o bem do mal. Assim podemos conhecer essa “norma suprema da vida humana”, que o Concílio Vaticano II recorda como “a própria lei divina, eterna, objetiva e universal, pela qual Deus ordena, dirige e governa o Universo e os caminhos da comunidade humana.” (5)
Assim nasce a ciência que chamamos de Ética (vem se ethos, que em grego quer dizer costume, modo habitual de agir). A Ética investiga aquilo que é bom fazer, para que – fazendo-o – alcancemos a maior perfeição humana possível e, portanto, satisfaçamos os nossos mais profundos desejos, ou seja: alcancemos a felicidade.
Quando se diz que algo “é ético” ou “não é ético”, o que se está dizendo é que é ou não bom. Contudo, embora todos concordemos em afirmar que a nossa conduta deve ser “ética”, nem sempre concordamos sobre se essa ou aquela coisa em concreto é ou não é “ética”. O que para alguns parece ser “ético”, para outros é uma monstruosidade. Assim, por exemplo, alguns afirmam que é “ético” provocar o aborto quando a gravidez resultou de um estupro, enquanto outros dizemos que fazer isso é cometer um dos piores crimes – mais grave até do que o terrorismo –, negando ao não-nascido inocente o direito mais elementar de qualquer pessoa: o direito à vida.
Esse exemplo nos permite entender a enorme importância que tem estarmos esclarecidos sobre o que é e sobre o que não é “ético”: sobre quais coisas são as realmente “boas”. Não é uma questão trivial que possamos deixar para que outros resolvam. Trata-se de uma questão de vida ou morte, e que deve ser encarada com toda a seriedade e rigor.
É possível chegar a um conhecimento certo sobre “o que é bom” – pelo menos em seus aspectos fundamentais – ou estamos condenados a uma eterna dúvida, a meras opiniões sem fundamento racional? Existe um critério objetivo de bondade que nos permita discernir, sem medo de errar, entre o bem e o mal? O bom senso sempre afirmou que sim, mas é conveniente que compreendamos porque, e também porque alguns enxergam as coisas de modo diferente.
É claro que o bem – o que é bom – é assim porque contém alguma perfeição que o torna apetecível, desejável. Aristóteles dizia que “o bem é algo que todos desejam”. Mas por que todos desejamos o bem? Porque vemos nele algo que nos beneficia, algo que “nos faz bem”, que nos aperfeiçoa, que nos melhora, que satisfaz as nossas necessidades, que nos faz mais felizes. Cabe dizer que o bem é uma perfeição que me aperfeiçoa: uma perfeição aperfeiçoadora (essas considerações – tão óbvias que parecem um simples lugar-comum – não são vãs).
O BEM É RELATIVO
Deve-se notar que nem tudo aquilo que aperfeiçoa um determinado sujeito aperfeiçoa igualmente todos os outros. O adubo animal serve como nutriente para as plantas, mas não para os homens. A alfafa é boa, saborosa e sadia: mas para as vacas, não para nós. Portanto é claro que o bem é relativo: é relativo a um sujeito ou a um determinado grupo de sujeitos, mais ou menos numeroso.
Essa “relatividade” do bem levou muitos a pensar que o bem não é algo “objetivo”, isto é: que o bem não está aí fixo, independente do meu pensamento. Cada um poderia considerar como sendo bom “aquilo que lhe pareça”: cada qual seria livre para considerar boa uma coisa ou a coisa oposta, decidindo por conta própria sobre o bem e o mal. Cada um seria – afirma-se – um “criador de valores”, já que a bondade das coisas não estaria nelas mesmas, mas na minha subjetividade, no meu pensamento, nos meus desejos ou opiniões. Esse é um grave erro no qual muitos incorrem, mas esse erro não é novo: é tão velho quanto a Humanidade. Adão e Eva não quiseram reconhecer que o bem estava onde Deus o tinha posto, pretendendo encontrá-lo onde eles, com sua má vontade, queriam que estivesse.
O BEM É OBJETIVO
Embora o bem seja “relativo” (algo é bom sempre “para alguém”), em termos estritos é a coisa menos subjetiva e opinável que existe. A bondade do ar que respiramos, da água que bebemos, do calor e da luz do sol que nos dá a vida, etc., etc... não é coisa que tenhamos inventado ou criado, não é uma bondade “opinável”: é algo que já está aí, independentemente das nossas avaliações.
De modo similar conhecemos os valores da justiça, da liberdade, da paz, da fraternidade: valores objetivos que não teria sentido negar. Mesmo se os negasse porque não me apetecem, ainda assim continuariam sendo valiosos para os outros. Essa minha inapetência seria um sintoma claro de alguma doença que tenho no corpo ou na alma.
É também importante notar – ao contrário do que foi muito difundido por certos filósofos – que se uma maçã me apetece, não é porque eu tenha conferido a ela o bom sabor. A maçã não se torna saborosa simplesmente por que sou eu quem a saboreio. Ainda que para outro ela seja insossa – talvez porque ele esteja doente –, a bondade da maçã não é produto da minha subjetividade: é a própria maçã que tem por si mesma a aptidão para causar um bom sabor e uma boa nutrição. Se assim não fosse, alguém poderia encontrar o mesmo sabor no fel ou até no lixo.
Está claro que existem bens e valores objetivos. Mas caberia perguntar se todos os bens são objetivos. A resposta é que de fato todos o são. Isso porque na prática as coisas e as ações humanas, queiramos ou não, sempre aperfeiçoam ou prejudicam: inclusive aquelas que – em teoria – poderiam razoavelmente ser consideradas indiferentes, como por exemplo passear.
Portanto, a “relatividade” do bem não significa que o bem é bom porque a minha vontade assim o deseja, mas que a minha vontade deseja o bem porque ele é bom. A bondade primeiramente está na coisa e só depois pode (ou não) estar no meu capricho, nas minhas opiniões ou nas minhas preferências. O que é bom para mim pode ser mau para outro; por exemplo, um remédio ou um trabalho determinado. Isso não depende do meu parecer. Do que depende então? Depende precisamente daquilo que eu sou, depende do meu ser, e isso já não é um produto da minha vontade, nem uma questão opinável. Embora os defeitos e qualidades que eu possuo agora tenham sido fruto dos meus atos voluntários anteriores, o que eu cheguei a ser, o que eu sou agora, é neste momento independente da minha vontade, e de modo igualmente independente da minha vontade haverá coisas que serão boas ou más para mim.
O bem depende, pois, do ser (do ser real, objetivo, que está aí) e do modo de ser. E se há algo que o Homem nunca poderá deixar de ser é precisamente isso: ser Homem. As características pessoais ou individualizantes próprias de cada um nunca esfumam ou anulam a natureza humana; são, pelo contrário, perfeições (ou defeitos) dessa natureza peculiar que todos compartilhamos: uma natureza que nos permite falar de “gênero humano” ou de “espécie humana”, e também de um bem objetivo comum a toda a Humanidade.
Como vimos, existem bens relativos a pessoas singulares. Mas é igualmente certo que existem bens relativos à natureza humana comum, e portanto relativos a todos e a cada um dos indivíduos da nossa espécie. É por isso que há leis ou normas morais objetivas, universais e permanentes, que afetam todos os homens, em qualquer tempo e lugar. O que prejudica a natureza forçosamente prejudicará a pessoa, porque a pessoa não é alheia à natureza: é o sujeito dessa natureza determinada.
A naturezas diversas correspondem bens diversos. O que é bom para o animal ou para o anjo pode não ser bom para o Homem. Por isso, para sabermos o que é bom para o Homem – para todos e cada um –, é indispensável conhecermos antes a resposta à grande pergunta: O que é o Homem? “Que sou eu, meu Deus? – exclamava Santo Agostinho – A minha essência, qual é?” (1)
A Ética (ciência sobre os bens do Homem) supõe a Antropologia Filosófica (que estuda o que é o Homem). Na História do Pensamento encontram-se éticas diferentes porque há diferentes conceitos sobre o Homem, e portanto diferentes conceitos sobre os bens.
O QUE É O HOMEM?
Para alguns, o Homem nada mais é do que um conjunto de corpúsculos, embora complexo e maravilhoso (Carl Sagan, o famoso cosmólogo norte-americano, por exemplo, dizia isso); muitos o consideram como pura química, ou como mero conjunto de instintos fatalmente determinados, ou como um simples número dentro da espécie zoológica. Todas essas são diferentes manifestações da visão materialista do Homem.
Pelo fato de negar – de modo dogmático, certamente – a realidade da alma espiritual e imortal, todo materialismo torna-se incapaz de conhecer o que o Homem na verdade é, e por esse mesmo motivo também não pode saber o que realmente é bom ou “ético”. Quando um materialista pensa no Homem como um simples animal evoluído – em quem não há nada que não seja redutível a elementos materiais –, não consegue pensar no bem sem reduzi-lo ao que é material e sensitivo; e além disso tenderá a conceder um valor absoluto aos assuntos econômicos. Escapa-lhe o que é mais valioso: o espírito, em que está a imprescindível raiz do entendimento e da vontade livres.
Por isso os termos “liberdade”, “justiça”, “paz”, “amor”, etc. no materialismo carecem de conteúdo humano, confundem-se com as sombras de tais coisas que parecem existir nos animais. O próprio conceito de “pessoa” é esvaziado, ficando o Homem reduzido a um “número” cuja função é servir a “espécie” (chamada de “sociedade”). Se a “espécie” assim o exigir, não haverá nenhum inconveniente em sacrificar o “indivíduo”: poder-se-á com toda paz saqueá-lo, ou trancafiá-lo num hospital psiquiátrico ou eliminá-lo. O que conta é somente o bem da “espécie”, como na Zoologia. Tal é a tremenda conclusão do coletivismo, especialmente o marxista.
Se realmente queremos o que é bom para nós mesmos e para a Sociedade – que está composta não por meros indivíduos, mas por pessoas de valor único e irrepetível –, então temos de ter a honradez de contemplar o Homem em toda sua integridade. Não basta ver somente um corpo dotado de sentidos e instintos. Isso equivale a não ver o Homem, da mesma forma que aquele que vê somente uma das seções – a vertical ou a horizontal – de um cilindro não vê o cilindro: confunde-o com um círculo ou com um quadrado, e pode até chegar à conclusão de que o cilindro é um círculo quadrado, um absurdo, portanto, que só pode existir como uma vã ilusão mental. Pode-se chegar inclusive a negar a possibilidade de existirem cilindros, da mesma forma como foi negado que exista a alma humana imortal. Esquartejou-se o Homem, cortando-o pela metade, até o momento em que o “sábio”, diante da platéia e da mesa de dissecação, sentencia: “como não vejo a alma em parte alguma, ela não existe” (aplausos). O mesmo fez aquele astronauta soviético, que declarou triunfante que Deus não existe porque não viu ninguém lá em cima, no seu passeio pelo espaço.
O Homem é um “cilindro” muito peculiar: é infinito em altura, não tem topo, não tem limite superior, e por isso só uma “seção” totalmente “vertical” é capaz de revelar sua dimensão transcendente à matéria. Mas não é difícil descobrir essa dimensão usando um pouco de bom senso. Mais adiante voltaremos ao assunto. Não deixa de ser certeira aquela frase gráfica de Unamuno, mesmo sendo ele um homem confuso quanto à religião: “o que chamam de espírito parece-me muito mais material (quer dizer “perceptível”, “claramente cognoscível”) do que aquilo que chamamos de matéria; sinto minha alma mais importante e mais sensível que meu corpo”.
Foi dito – e com toda a razão – que o materialismo é o mais curioso esforço jamais feito pelo espírito humano na tentativa de provar a não-existência do espírito humano. Isso porque “só um ser pensante – ou seja: espiritual – pode pôr-se a «demonstrar», mediante argumentos, o materialismo” (2). O materialismo, deslumbrado pela semelhança morfológica entre o Homem e o macaco, confunde os dois. Ocorre aquilo que observa Johannes Torelló: “objetos de estudo essencialmente diferentes, ao serem projetados pelo cientista contra um plano inferior, aparecem-lhe como sendo iguais. Assim, a projeção de uma esfera, a de um cilindro e a de um cone são a mesma: um círculo ambíguo e tentador aos olhos de espíritos simplistas, capazes de concluir que no fundo um cilindro, uma esfera e um cone são realmente a mesma coisa”.
É certo que temos um corpo e uns sentidos que reclamam satisfações para as suas necessidades vitais. Mas antes de qualquer coisa possuímos algo que excede tudo o que procede da matéria: o entendimento, ávido e insaciável de verdade. Já desde criança o homem sadio começa a “exasperar” os adultos com as suas intermináveis perguntas: “Mamãe, o que é isso?”, “para que serve aquilo?”, e sobretudo “por que?”, “por que?”, “por que?”... É que o menino ou a menina está buscando desde já uma resposta última e definitiva, que não remeta a outro “por que”, que seja algo assim como o grande “Porquê” que tudo explique, que seja a Verdade Primeira e a Origem de todas as outras verdades. A criança pergunta por Deus, procura Deus, precisa de Deus desde que sua inteligência desperta para o “uso da razão”. É o que diz a célebre oração de Santo Agostinho: “Criaste-nos, Senhor, para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em Ti.” (3)
A única coisa capaz de saciar e aquietar o entendimento é o conhecimento de Deus: não um conhecimento qualquer, mas todo o conhecimento de que seja capaz. Somente assim alcança a sua perfeição suprema, a sua plena felicidade.
A vontade, por outro lado, é uma ilimitada capacidade de amar o bem (não “infinita” mas “ilimitada”, porque por muito que ame sempre quer amar mais), que não se conforma com qualquer bem: deseja o ótimo, o máximo bem. Quando a vontade põe o seu amor numa criatura e a possui de algum modo, logo fica satisfeita; mas em seguida percebe que aquilo não é o máximo: que resta um vazio ainda sem preencher, que ainda está longe de alcançar a plenitude de bem e de amor que buscava. Isso porque todos nós – sabendo-o ou não – queremos a Deus, buscamos a Deus, temos fome de Deus como Verdade primeira e Bem infinito, como Sabedoria e Amor plenos: somente nEle – no amoroso conhecimento de Deus – encontra-se a perfeição, a plenitude humana, a felicidade sem sombras. Esse é o nosso fim, o nosso máximo bem comum objetivo.
A FELICIDADE PERFEITA E O BEM SUPREMO
Agora que sabemos – não detalhadamente mas com profundidade – o que é o Homem, sabemos também qual é o seu bem fundamental e indispensável. Independentemente do que eu queira ou pense, do que me apeteça ou do que eu escolha, o meu Bem é Deus. Assim encontramos um critério objetivo de bondade: no mundo, será bom para mim – bom moralmente, bom em sentido “ético” – aquilo que me aproxime de Deus (ou pelo menos não me afaste dEle), e será mau para mim aquilo que me afaste de Deus, ainda que me apeteça. Aquilo que me aproxima de Deus será também uma perfeição do meu ser pessoal; o contrário, aquilo que me afasta dEle, sempre e sem dúvida será prejudicial ao que há de mais íntimo em mim.
Essa é já uma conclusão de suma importância. Mas por outro lado é claro que surge uma nova pergunta: na prática, o que me aproxima de Deus e o que me afasta dEle? A luz natural da razão é um dom que todos recebemos e que nos permite descobrir quais são as exigências fundamentais do ser humano, cujo conjunto é a lei natural, formulada sinteticamente no Decálogo pelo próprio Deus. Assim se entendem bem aquelas palavras de João Paulo II: “A lei moral é a lei do Homem, porque é a lei de Deus”. Com efeito, “a verdade expressa pela lei moral é a verdade do ser, tal como é pensado e querido por Deus que nos criou”. É por isso que “há uma profunda consonância entre a parte mais verdadeira de nós próprios e aquilo que Deus nos manda, apesar de que – usando as palavras do Apóstolo – sinto nos meus membros outra lei que repugna a lei do meu espírito (Rom 7, 22). (4)”
Se em nossa mente não existisse a sombra do pecado original e se a nossa vontade não tivesse sido debilitada, conheceríamos bem a nós mesmos e, conseqüentemente, conheceríamos sem nenhuma dúvida o que é bom: teríamos uma visão clara da lei moral. Acontece que encontrar essa lei nos custa trabalho, até porque também nos custa trabalho vivê-la. Mas Deus, na sua infinita Misericórdia, veio em nosso auxílio – fez-se Homem! – para nos dizer com palavras humanas qual é o caminho que nos faz de verdade homens perfeitos e felizes: Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6). E não nos oferece apenas uma felicidade natural: mediante a Sua Encarnação, Vida, Paixão, Morte e Ressurreição, abriu-nos as portas para nada menos do que a vida íntima de Deus Uno e Trino. Colocou à nossa disposição a Sua própria Felicidade: o máximo, não já relativamente ao Homem, mas em absoluto.
E para que todos os homens possam conhecer facilmente – sem disputas ou dúvidas angustiosas, sem esforços hercúleos – quais são as coisas que nos aproximam de Deus e quais as que nos afastam dEle, fundou a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica. Dotada de um Magistério autorizado, assistido sempre pelo Espírito Santo – o Espírito da Verdade –, a Igreja é capaz de traçar, a cada momento, o mapa certo e seguro dos caminhos do bem. Temos aí – especialmente os católicos, mas também de algum modo todos os outros – o grande critério, a grande luz, a grande segurança para discernir o bem do mal. Assim podemos conhecer essa “norma suprema da vida humana”, que o Concílio Vaticano II recorda como “a própria lei divina, eterna, objetiva e universal, pela qual Deus ordena, dirige e governa o Universo e os caminhos da comunidade humana.” (5)
NOTAS
(1) SANTO AGOSTINHO, Confissões, X, 17
(2) CORNELIO FABRO, Dios, Madrid, Ed. Rialp, 1961, p. 203
(3) SANTO AGOSTINHO, o.c., I, l
(4) Audiência geral, 27-VII-1983
(5) Decreto Dignitatis humanae, nº 3.
Fonte:
Arvo.net
Tradução:
Quadrante
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