Diz S. Agostinho que os profetas falaram mais da Igreja que de Nosso Senhor, porque era mais fácil errar acerca da Igreja do que de Cristo. Segundo o grande bispo de Hipona, não faltariam aqueles que fizessem alarde de ser eles os únicos católicos, e de que somente neles estaria a verdadeira Igreja Católica.
O nosso tempo – autor de uma eclesiologia tantas vezes herética – demonstra muito bem essa verdade.
Daí a necessidade de conhecer bem a doutrina da Igreja acerca de si mesma.
Por outro lado, não se pode amar aquilo que não se conhece. Defender a Igreja - dever de todo católico - pressupõe amá-la; amá-la pressupõe conhecê-la.
Hoje não se ama a Nosso Senhor porque Ele não é conhecido, e isto se dá exatamente porque a Igreja não é conhecida. Se o fosse, ver-se-ia bem que a Igreja Católica é uma obra divina, e se reconheceria que seu autor, Nosso Senhor, é Deus.
Os inimigos da Igreja não se cansam de atacá-la. Os católicos, porém, deixam de defendê-la, pois simplesmente a desconhecem. Sua própria mãe lhes é, no fundo, uma estranha: de todas as tribunas os inimigos lhe jogam em face as piores calúnias, e seus filhos não se interessam em conhecê-la e defendê-la.
Da fé na Igreja depende, de certo modo, a fé em todos os outros pontos de nossa fé. Pois sem a autoridade da Igreja poder-se-ia rejeitar todo o Credo. Diz S. Agostinho que não creria no Evangelho se não lhe fosse apresentado pela autoridade da Igreja.
É claro que a Igreja não é senão um instrumento, porta-voz de Deus. Portanto, é em última análise no próprio Deus que nós acreditamos.
Antes de falar sobre a Igreja, porém, convém demonstrar a necessidade de sua existência, exigida pela própria condição humana.
1) A alma humana, por natureza, sedenta de absoluto
Deus criou o homem, pela sua própria natureza, obrigado à Religião.
Naturalmente, todo homem busca a felicidade plena, firme e imperecível: o homem foi feito por Deus com essa sede de felicidade impressa na alma.
S. Agostinho trata do assunto em seu livro De beata vita (Da vida feliz).
Trata-se de obra em forma de um diálogo, que teria início na casa de S. Agostinho, no dia de seu aniversário. Participam da festa ele próprio, sua mãe Santa Mônica, seu irmão Navígio, seus discípulos Trigésio e Licênio, seus primos Lastidiano e Rústico, e seu filho Adeodato.(1)
Ele toma a palavra sustentando que somos dotados de corpo e alma, e pergunta: "para qual dos dois desejamos o alimento?"
A resposta imediata é: para o corpo.
Ao que Santo Agostinho pergunta: e a alma, não possui seu alimento próprio?
S. Mônica diz que sim; que esse alimento é a ciência, o conhecimento.
Daí, completa S.Agostinho, poder-se dizer que os ignorantes estão com a alma em jejum e famintos, enquanto que os sábios possuem o espírito mais pleno, livre e saciado.
Por outro lado, assim como o corpo pode receber alimentos bons e saudáveis ou maus e funestos, assim também a alma. O bom alimento é o verdadeiro conhecimento, a verdade; o mau alimento é o erro.
S. Agostinho diz então que naquele seu aniversário ofereceria aos convivas um alimento para o corpo e outro para a alma. Espera que o alimento da alma os apeteça, pois são os doentes que perdem o apetite e recusam alimentar-se.
E prossegue seu raciocínio: todos querem ser felizes. Aquele que não tem o que deseja não é feliz. Mas quem tem o que quer será feliz?
É Santa Mônica quem responde: "Sim, se for o bem que ele apetece e possui, será feliz. Mas se forem coisas más, ainda que as possua, será desgraçado".
S. Agostinho lhe diz que ela atingiu o cume da filosofia. Portanto, para ser feliz não basta ter o que se deseja.
Assim, a felicidade está não só em querer o bom alimento da ciência verdadeira, mas em querer e ter o bem.
Quem não é feliz, é infeliz. Se ser feliz é ter o bem que se deseja, é infeliz quem não tem o que deseja. Para ser feliz, o homem deve obter tudo o que deseja.
Mas isso não basta. Pode ser feliz alguém sujeito a receios? Não. Podem estar sem receios aqueles que podem perder o que amam? Não.
Ora, todos os bens sujeitos a mudança podem ser perdidos: ou deterioram-se, ou são roubados, ou perdidos, etc. Portanto, quem os deseja ter e os tem ainda não pode ser feliz de modo absoluto. Eles não trazem felicidade.
É necessário ao homem que deseja ser feliz que procure um bem permanente, livre das variações da sorte e das vicissitudes da vida.
Ademais, os bens frágeis não satisfazem. E, diz S. Mônica, a pessoa que os tivesse seria infeliz também porque sempre quereria mais.
De outra parte, não é feliz aquele a quem falta o que quer. A carência é uma infelicidade. Portanto, a felicidade exige um bem pleno, absoluto, além de imperecível.
Qual é o bem eterno, imutável e pleno? - pergunta S. Agostinho. Deus é eterno, imutável, pleno. Logo, conclui ele, quem possui a Deus é feliz.
Mas - prossegue - quem possui a Deus?
Os ouvintes dão três respostas: possui a Deus quem vive bem; quem faz o que Deus quer que faça, quem não tem em si o espírito imundo.
S. Agostinho afirma que com palavras diferentes eles exprimiram a mesma idéia: quem vive bem faz a vontade de Deus, e quem faz o que Deus quer, vive bem. O espírito imundo pode ser ou o próprio demônio, ou o vício e o erro. Quem não o possui está livre do demônio, dos vícios e erros. Para isso, é preciso viver bem e fazer o que Deus quer.
Portanto, possui a Deus quem quer viver bem e vive bem. Quem procura a Deus e faz sua vontade.
Como se vê, S. Agostinho mostra que a felicidade reside na Verdade e no Bem, com plenitude e segurança. Em uma palavra, reside em Deus.
Criado para Deus, todo homem busca Deus e não se satisfaz senão na Sua posse. Deus é o anseio natural de todo homem, ainda que não saiba disso.
O mesmo já fora afirmado por Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco. Ele afirma que o maior bem que o homem pode atingir é a felicidade.
Mas, pergunta, o que é felicidade? Normalmente, se considera que a felicidade reside nas riquezas e no prazer.
Ele responde que isso é para os animais, que se contentam com a matéria.
A felicidade residiria nas honras? Ele responde negativamente. A honra é algo que depende dos outros: pode ser dada e retirada. Ora, uma felicidade ameaçada não é plena, pois é turbada pelo temor de ser perdida.
A verdadeira felicidade, diz ele, tem duas exigências: plenitude e segurança. A felicidade perfeita não pode ser arrancada por outros (insegura) nem ser parcial.
Sem saber disso, Aristóteles descreveu o Céu: posse plena e segura da verdadeira felicidade.
Assim, a felicidade somente pode ser verdadeira e completa se satisfaz plenamente o apetite humano. Enquanto houver descontentamento, falha, a busca não cessa; a felicidade plena não foi atingida. Falta algo.
Portanto, nada do que é material e finito (inseguro e carente) satisfaz esse desejo do homem.
Embora finito, o homem tem sede de infinito; embora mortal em seu corpo, o homem anseia pelo eterno; embora limitada, a alma pode conter em si, de alguma forma, o infinito, pela posse de Deus.
Ora, por sua natureza, um peixe não pode querer chegar aos astros, nem uma formiga desejar beber o oceano. Nem o homem, finito, limitado, poderia naturalmente desejar o infinito, o absoluto.
O homem desejar o absoluto é como uma formiga ter sede de todo o oceano. Mas Deus o criou com esse desejo. Portanto, o homem foi criado para um fim sobrenatural.
A posse de Deus traz a plenitude que é anseio da alma. Nesta vida, ela se dá de alguma forma através da graça santificante. Mas a posse definitiva, imperturbável, será alcançada no Céu, onde haverá a felicidade total da alma.
a) A inteligência, sedenta da Verdade plena
Deus criou a alma humana com duas faculdades principais: inteligência e vontade.
Ora, Deus fez o homem com boca para comer e falar; com nariz para respirar; com pernas para andar, etc. Se deu ao homem inteligência, foi obviamente para conhecer.
O objeto e o alimento da inteligência é a verdade; Deus criou o homem para conhecê-la.
É a única criatura material que conhece. Observando a maravilha do universo material e sua imensidão, o homem vê que é apenas uma ínfima parcela dele. Entretanto, ele é o único ser pensante. Todo o resto apenas se dá a conhecer; só o homem conhece. Só ele tem a faculdade de conhecer, ou seja, a inteligência.
A ciência natural, o conhecimento do universo material, não satisfaz a alma humana, pois todas as suas faculdades a elevam acima dele.
A inteligência tem sede de uma luz infinita, plena de certeza. Finita e limitada, ela aspira ao infinito.
Após ter sondado profundamente desde os astros até o átomo, o homem ainda se pergunta: e depois?
Exigir que ele pare antes de ter atingido o infinito é frustrá-lo. Essa é a grande frustração da ciência, que leva muitos cientistas ao erro da gnose.
Aliás, a fonte de todas as heresias, para iludir o homem, tinha que se chamar gnose, ou conhecimento. Ela nada mais é do que o falso conhecimento que o demônio oferece no lugar da verdade.
A inteligência humana tem sede de princípios: verdades eternas, imutáveis, necessárias. E a fonte desses princípios só pode ser a Verdade eterna, imutável, necessária: Deus.
Portanto, não é a ciência, mas é a fé que pode dar ao homem esse conhecimento pleno, isento de dúvida. Só a Fé pode lhe dar a explicação última e cabal das coisas, que o satisfaça.
Repitamos o que diz Santo Agostinho: o homem só é feliz quando tem o que deseja de forma plena e imperecível. Assim, a inteligência só será feliz e repousará quando tiver tudo o que deseja.
Ela somente pode ser satisfeita pela verdade plena, que apenas pode ser dada por Deus.
b) A vontade, sedenta do pleno Bem
A vontade é a capacidade de querer; é a capacidade de amar. Seu objeto é o Bem, a caridade.
Também a vontade, por sua própria natureza, busca a felicidade plena, e portanto não se satisfaz com o bem que é passageiro, relativo. Ela foi criada com sede do Bem absoluto.
Os bens finitos podem atrair o homem, encantá-lo, subjugá-lo. Atingidos, porém, mostram-se insuficientes; geram novo desejo por bens superiores.
O coração humano é como um abismo que todas as alegrias e gozos materiais não são suficientes para preencher.
Somente a caridade, que dá a posse de Deus, Bem Absoluto, pode preenchê-lo e satisfazer a vontade humana.
A posse da verdade absoluta, plena, é dada nesta vida pela fé. Deus habita a inteligência, nesta vida, pela fé.
O bem pleno para a vontade é a caridade, o amor de Deus. Deus habita a vontade pela caridade.
c) Aspiração pelo infinito, desejo de alcançar a posse de Deus
Assim, a alma deseja o infinito como o corpo deseja o ar, a água e o alimento.
Finito, o homem foi feito com sede de infinito.
O homem diante de Deus, essa formiga em face do oceano, é capaz de atingir e de mover Deus, infinitamente superior a Ele. A voz limitada da alma humana chega até Deus infinito.
Daí poder o homem elevar a Deus suas orações tendo certeza de que serão ouvidas, apesar da infinita distância que separa o Criador da criatura.
Não contente de subir até Deus, o homem deseja também que Deus desça até ele, sabendo esse ato tão realizável quanto o primeiro. Tal foi o desejo expresso por Isaías: "Utinam dirumperes caelos et descenderes!": "Que Ele rasgue os céus e desça!"
Foi o que aconteceu na Encarnação.
É essa aspiração natural e inevitável por Deus, essa sede de Deus insaciável por qualquer coisa que não seja Ele, que explica a universalidade da religião, encontrada em todas as épocas e em todos os lugares.
Aquilo que é constante faz parte da natureza. Vemos as abelhas sempre construindo; logo, dizemos que a abelha é construtora. Vemos os homens sempre respirando; logo, dizemos que respirar faz parte da natureza humana.
Assim também a religião, que é uma constante. Portanto, a aspiração por Deus é uma lei da espécie humana, que nas falsas religiões erra o caminho, atingindo fim diverso.
d) A aspiração a Deus, embora natural e necessária, não subjuga o homem
Esse desejo de Deus, embora natural e necessário, não tira a liberdade do homem, que pode rejeitá-lo, agindo contra sua própria natureza.
Ademais, ele pode crescer (com a virtude) ou descrescer (com o vício).
Também a dor e o sofrimento podem fazê-lo crescer, enquanto que o prazer pode diminuí-lo. Alguém já viu um homem que acreditava em Deus renegá-Lo no leito de morte e abjurar sua fé? Não; o que se vê é o contrário.
2) A posse de Deus
a) O Absoluto desejado pela alma é atingível
Deus portanto criou o homem finito, mas com desejo de infinito. Uma formiga com sede de oceano.
Ilusão? De forma alguma.
Se Deus criou o homem com esse desejo, essa busca, tinha que lhe dar meios para alcançar o que procura. Se Deus quer que o homem atinja o Céu, e o criou para isso, necessariamente indicou o caminho e deu meios para percorrê-lo.
Assim como Deus não poderia ter criado o homem dependendo de algo inexistente para sobreviver – por exemplo, leite de aves – assim também não poderia ter criado a alma com desejo de algo inatingível.
Deus não criou a formiga com sede de oceano, mas de algo compatível com seu tamanho.
Deus criou o corpo do homem dependente de ar e de alimento. E por isso lhe deu ar e alimento, que existem e são alcançáveis.
Como vimos, Deus criou a alma com desejo de felicidade plena. Essa felicidade plena é o alimento da alma, que foi criada para viver na medida em que a alcançar.
Portanto, ela é atingível. Pela graça, Deus habita na alma. E a faz feliz.
b) Entretanto, por si só a alma não é capaz de atingir e de manter a felicidade plena: necessidade da revelação e de meios de obtenção da caridade
Como vimos, Deus quer que o homem O obtenha, e se salve.
Deve ter dado ao homem meios de A) conhecer o caminho que leva até Ele e B) percorrê-lo, mantendo-se na rota devida.
Ora, por sua limitação, a inteligência humana não é capaz de conhecer, por si mesma, determinadas verdades que estão acima de seu alcance. Não é capaz de, sozinha, conhecer o caminho que leva à posse de Deus.
Naturalmente, a alma pode apenas vislumbrar sombras da Verdade absoluta. Foi o que fizeram alguns filósofos pagãos.
Assim, por suas limitações, ela é impotente para conhecer os mistérios e o que concerne a ordem sobrenatural.
Igualmente, por estar sujeito ao pecado, o homem por si só não é capaz, a não ser excepcionalmente, através da contrição perfeita, de atingir ou de manter o Sumo Bem, a caridade, a posse de Deus, a graça santificante.
Se Deus deu esse desejo de plenitude à alma, e se portanto viu-Se obrigado a colocar a seu alcance a satisfação desse desejo, é certo que Deus:
A) revelou-Se à inteligência humana: somente Ele poderia revelar à alma verdades por ela inatingíveis sozinha.
B) deu meios para a alma obter ou recuperar a graça santificante.
C)Entretanto, a existência apenas da revelação e dos meios de obtenção da graça não é suficiente: necessidade da Igreja.
A Sagrada Escritura, veículo da revelação divina, é um livro, e como tal está sujeito a diversas e contraditórias interpretações. Ela própria nos ensina que "a fé vem pelo ouvido". Daí ter Cristo ordenado a seus apóstolos: "Ide e ensinai", ao invés de mandá-los distribuir bíblias.
Portanto, a Sagrada Escritura, de si, não é suficiente para a aquisição da Verdade plena, da verdadeira Fé.
De outra parte, para praticar o bem e atingir a caridade, a mera existência dos meios de obtenção ou reaquisição da graça não é suficiente. É preciso que o homem encontre quem os pregue e administre verdadeiramente.
Conclui-se que não bastava Deus revelar-Se ao homem e dar-lhe meios para que atingisse o Sumo Bem. Era necessário mais: dar ao homem alguém que ensinasse como interpretar a revelação, bem como alguém que administrasse os meios necessários para atingir a graça.
Se não o fizesse, Deus agiria como alguém que promete a seu filho um enorme presente, desperta nele o desejo de possuí-lo, mas o coloca em local inatingível. O presente existe e foi dado, mas isso não é o suficiente.
Para que o homem O alcançasse, era portanto necessário que Deus desse a ele uma Igreja que ensinasse a correta interpretação da revelação e administrasse os meios para a obtenção e manutenção do Sumo Bem.
É o que faz a Igreja Católica, através do Magistério e dos Sacramentos.
Homem
|
|
Igreja
|
Inteligência
|
Fé
|
Magistério
|
Vontade
|
Caridade
|
Sacramentos
|
Portanto, é a Igreja quem dá Deus ao homem, satisfazendo plenamente o anseio de sua alma.
Essa Igreja tinha que ser visível, pois do contrário não seria possível ao homem encontrá-la.
Entretanto, não só a Igreja Católica, mas muitas outras igrejas se dizem inspiradas por Deus, depositárias da revelação e salvadoras.
Assim, era também necessário que Deus desse ao homem critérios que permitissem conhecê-la e distingui-la das falsas igrejas.
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