terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Salvação ou Condenação?

Escrito por Dom Estêvão Bettencourt: Revista Pergunte e responderemos.

Antes do mais vamos colocar o problema em termos claros ante os nossos olhos; a seguir, analisaremos a sua solução clássica.
 
1. O problema
 
1.1. Consultando a Sagrada Escritura, o leitor nela encontra uma série de textos que afirmam a vontade salvífica universal de Deus (ou o desejo que o Senhor tem de salvar todos os homens).
 
a) Assim desde os inícios do Antigo Testamento ressoa a promessa de um futuro Redentor destinado a todos os homens sem restrição: «Porei inimizades entre a linhagem da mulher e a linhagem da serpente...» (cf. Gên 3,15s).
 
Quando em 1800 a. C. Deus escolhe Abraão e seus descendentes para constituírem a estirpe do Messias, prediz que por essa disposição serão largamente agraciados todos os povos: «Todas as nações da Terra serão abençoadas por teu intermédio» (Gên 12,2s; cf. 22,18). Por meio de Israel Deus quis proporcionar a salvação ao gênero humano inteiro, como, aliás, frequentemente inculcam os Profetas: cf. Is 49,6; 53,11; 60,1-4; 66,18-23; Zac 8,20-23; 14,16-19.
 
Por fim, o Senhor mais de uma vez nas Escrituras Sagradas declarou explicitamente que «não quer a morte do pecador, mas, sim, que se converta e viva» (Ez 33,11; cf. 18,27s), pois Ele ama todas as criaturas, principalmente os pecadores penitentes (cf. Sab ll,24s ; 12,16-22).
 
b) Muito mais rico em testemunhos congêneres é o Novo Testamento, onde Jesus aparece como «o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo» (cf. Jo 1,29) ou como o Filho que Deus Pai, por amor, entregou para salvar o mundo (cf. Jo 3,16). É São Paulo quem com a máxima clareza desvenda o desígnio divino:
 
«Antes do mais, exorto a que se façam preces, orações, súplicas e ações de graças por todos os homens... Isto é bom e agradável aos olhos de Deus nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens: Cristo Jesus, homem, que se deu em resgate por todos» (1 Tim 2,1-6).
 
Qualquer interpretação restritiva do texto seria alheia à intenção do Apóstolo: a salvação é universal, porque Cristo, o único Salvador, morreu por todos. Note-se, aliás, a tríplice ocorrência do termo «todos» na passagem acima.
 
São Pedro, por sua vez, faz observar que «o Senhor... procede com paciência..., não querendo que alguém pereça, mas, ao contrário, desejando que todos recorram à penitência» (2 Pdr 3,9).
 
Em conclusão, os textos até aqui citados dão a ver que da parte de Deus não há restrição alguma à salvação dos homens; todos recebem o mesmo chamado e os mesmos meios para entrarem no gozo da bem-aventurança eterna.
 
1.2. É inegável, porém, que, não obstante essa vontade salvífica universal, nem todos os homens de fato se salvam, conforme atesta a Sagrada Escritura mesma.
 
Chama-nos a atenção, por exemplo, o trecho no qual Cristo descreve o julgamento final, prevendo certo número de homens colocados à sua esquerda, onde ouvirão a sentença de reprovação: «Retirai-vos de Mim...!» «Estes, diz o Senhor, irão para o castigo eterno, ao passo que os justos entrarão na vida eterna» (cf. Mt 25,41-46).
 
É notório também o fecho da parábola das dez virgens, das quais cinco, retardatárias por sua negligência, batem à porta do Esposo, ouvindo por resposta : «Em verdade vos digo: não sei quem sois !» (Mt 25,12).
 
De resto, as parábolas escatológicas (ou concernentes ao fim dos tempos) costumam referir uma sentença de condenação para os que tiverem desprezado a graça de Deus; cf. Mt 25,30 (parábola dos talentos); Lc 19,24-27 (parábola das minas); Mt 24,50s (parábola do servo infiel); Mt 22,13 (parábola dos convidados às núpcias).
 
São Paulo enumera mesmo algumas categorias de pecadores que não poderão possuir o Reino de Deus :
 
«Não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos iludais! Nem os fornicadores, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os infames, nem os fraudulentos, nem os avarentos, nem os ebriosos, nem os caluniadores, nem os ladrões possuirão o Reino de Deus» (1 Cor 6, 9s).
Em outra passagem acrescenta o Apóstolo:
 
«As obras da carne são estas: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, magia, inimizades, contenda, ciúme, ira, rixas, discórdias, facções, sentimentos de inveja, embriaguez, orgias e outras coisas semelhantes. Já vos admoestei e de novo admoesto: aqueles que praticam essas coisas, não terão parte no Reino de Deus» (Gál 5,19-21).
 
1.3. Recapitulando a doutrina da Sagrada Escritura, verifica-se que duas proposições são, com igual certeza, incutidas pelo texto bíblico:
 
Deus quer, sim, salvar todos os homens;
na verdade, porém, nem todos se salvarão.
 
Daí resulta um problema não desprezível. Com efeito; nada acontece em contrariedade à soberana vontade de Deus, nem mesmo a ruína dos pecadores; como então conciliar a vontade salvífica universal do Criador com a perda dos réprobos de que falam Jesus e o Apóstolo ?
 
A resposta a esta questão foi-se esboçando desde o séc. III (Tertuliano); chegou à sua formulação adequada nos escritos de São João Damasceno (+749), formulação que São Tomás explicitou e sancionou definitivamente. Consideremo-la rapidamente.
 
2. A solução clássica
 
2.1. Nada acontece sem a participação da vontade de Deus, dizia-se atrás.
 
Faz-se mister, porém, distinguir entre vontade antecedente e vontade consequente.
Chama-se vontade antecedente a vontade que se aplica ao seu objeto considerado em si mesmo, ou abstração feita das notas concretas acidentais de que esse objeto se possa revestir na realidade. Vontade consequente, ao contrário, é a vontade que visa o seu objeto tal como ele existe na ordem real, concreta, ou tal como ele se apresenta no plano da história. Pode acontecer que certo objeto, considerado em si mesmo ou em suas notas essenciais, deva ser tido como bom; visto, porém, à luz das circunstâncias concretas em que ele realmente existe, poderá merecer apreciação totalmente diversa.
 
Aplicando a distinção à questão focalizada, diremos:
 
Deus, em sua vontade antecedente, quer que todos os homens se salvem. Com efeito; Deus outorgou a todos a mesma natureza sequiosa do Bem infinito. Por conseguinte, considerando o homem segundo as notas essenciais da sua natureza, Deus certamente quer a salvação ou a posse da bem-aventurança para todos os homens ; foi em vista da felicidade eterna, e somente em vista desta, que o Senhor criou o gênero humano.
 
Considerando, porém, cada indivíduo humano de per si, tal como comparece perante o juízo de Deus após o currículo desta vida, o Senhor não pode querer que todos tenham indistintamente a mesma sorte bem-aventurada, pois nisto haveria injustiça. Na realidade, alguns homens, abusando do livre arbítrio, frustram sua vocação para a bem-aventurança eterna, aderindo incondicionalmente às criaturas. Sobre esses o Senhor Deus tem que proferir sentença diversa da que compete às almas retas. Portanto, em sua vontade consequente, Deus, justo como é, não pode querer a salvação de todos os homens, mas há de querer o castigo dos maus (aliás, esse «querer o castigo dos maus», em última análise, não é senão «respeitar a livre opção dos que se quiseram saciar com as criaturas», como ainda mais claramente diremos abaixo).
 
Um caso análogo ilustra bem a doutrina proposta. Um juiz, antes que se ponha a julgar as causas dos acusados, quer, em vontade antecedente, absolver a todos, se possível. Acontece, porém, que, após examinar processo por processo, em sua vontade consequente, ele tem que querer a punição dos réus. Absolver a todos, sem distinção de inocentes e culpados, não seria justo nem contribuiria para o bem comum.
 
2.2. Algumas observações tornam-se agora oportunas a fim de se aprofundar quanto acaba de ser dito.
 
a) Como se entende, a distinção entre vontade antecedente e vontade consequente não implica imperfeição em Deus. Na verdade, tudo é simultâneo perante o Senhor; contudo as criaturas, às quais se aplica a vontade divina, podem e devem ser consideradas segundo modalidades diversas, ou seja, ora em si mesmas, no plano das meras idéias, ora revestidas de suas notas concretas e contingentes, no plano das realidades históricas, o que nos habilita a falar de vontade antecedente e vontade consequente em Deus.
 
b) Note-se ainda que a vontade antecedente do Senhor, que quer salvar todos os homens, não é mera veleidade estéril. Não, é vontade eficaz, no sentido de que ela quer e prepara para todos os homens, indistintamente, os meios necessários à salvação; contudo o Senhor dignou-se condicionar os resultados desses meios à aquiescência do livre arbítrio do homem, de sorte que, embora tudo esteja preparado da parte de Deus, nenhum fruto positivo de salvação se obtenha, caso o homem recuse as graças outorgadas pelo Pai do céu.
 
Em outros termos: Deus, ao querer a salvação de todos os homens em sua vontade antecedente, quer salvar sem extinguir o livre arbítrio do homem; antes, ... envolvendo a livre colaboração da criatura; o Todo-Poderoso não quis dotar o homem de livre arbítrio para reduzi-lo, no momento decisivo, à categoria de autômato.
 
c) A vontade consequente segundo a qual Deus não quer que tal ou tal indivíduo em particular se salve, é vontade meramente permissiva. Na verdade, o Senhor apenas permite que o homem se condene; nunca decreta a condenação da criatura por um ato positivo e explícito. Todas as vezes que uma alma humana se perde, deve-se dizer que foi essa criatura quem escolheu livremente tal sorte, desprezando os auxílios da graça a ela dispensados pelo Criador. Este apenas reconhece o alvitre do livre arbítrio criado; não o violenta, porque a violentação equivaleria a contradição e incoerência por parte do Criador (é por não levarem em conta este pormenor que tantas pessoas não veem como conciliar a bondade de Deus com a infelicidade póstuma do homem).
 
d) Naturalmente o estado de condenação não tem fim. Não é necessário que Deus decrete isto por um ato explícito de sua santíssima vontade; a perpetuidade da condenação póstuma é simples consequência do fato de que a alma humana é por si imortal (não consta de partes que se possam decompor, acarretando a morte); ela permanece, portanto, indefinidamente na disposição mesma em que a morte colheu o respectivo indivíduo.
 
E porque não poderia a alma mudar de disposições após a morte ?
 
Ela não o pode porque é somente em união com o corpo, nesta vida mortal, que a alma pode adquirir novas idéias e, mediante estas, novos afetos ou novas tendências... Tal é a psicologia humana.
 
e) Eis como em poucas palavras São João Damasceno resume toda a doutrina da vontade salvífica de Deus:
 
«Deus quer, por sua vontade primária e antecedente, que todos os homens sejam salvos e feitos participantes do seu Reino. Com efeito, Ele nos cria, não para nos punir, mas porque é bom, para nos fazer usufruir da sua bondade. ... Essa vontade primária e antecedente coincide propriamente com o desejo de Deus; em Deus está a causa dessa vontade. A outra vontade [ou modalidade do querer] é chamada consequente; consiste apenas numa permissão; ela tem sua raiz em nossos atos» (De fide orthodoxa II 29).
 
Eis os respectivos textos de São Tomás: In I Sent., dist. XLVT qu. 1, a. 1. ad 2; De verit. qu. XXIII a. 2; S. Theol. I qu. XIX a. 9; qu. XXII a. 2; qu. XXIH a. 5 ad 3.
 
2.3. Voltando agora ao texto de São Paulo, 1 Tim 2,1-5, observaremos um pormenor assaz significativo:
 
Ao afirmar que Deus quer a salvação de todos os homens o Apóstolo emprega o verbo thélo (thélei, em 1 Tim 2,4). Ora tal verbo nos livros do Novo Testamento em geral, significa frequentemente um desígnio que Deus mesmo se digna condicionar a certos fatores sem lhe atribuir eficácia absoluta (cf. Mt 23, 37: «Jerusalém, Jerusalém, ... quantas vezes quis [ethélesa] Eu reunir teus filhos como a galinha reúne os pintinhos debaixo de suas asas... e tu não o quiseste!»). Ao contrário, quando os escritores sagrados tencionam exprimir um decreto absoluto da vontade divina, usam o verbo boulomai; cf. 1 Cor 12, 11; Lc 10,22; 22,42; Hebr 6,17; Mt 11,27; Mc 15,15; At 13,36; 20,27.
 
Esta nota filológica corrobora bem a conclusão acima exposta de que a vontade salvífica universal de Deus não é absoluta, mas é, pelo próprio Senhor, condicionada à livre colaboração da criatura humana.
 
2.4. A titulo de ilustração, seguem-se algumas sentenças menos felizes, propostas por S. Agostinho para conciliar a vontade salvífica universal de Deus com a perda dos réprobos:
a) explicação distributiva: Deus não quer pròpriamente a salvação de cada criatura individual, mas a de representantes de todos os tipos humanos (reis, nobres, plebeus, doutos, indoutos, etc.); cf. Enchir. 103;
b) explicação restritiva: Deus quer a salvação de todos os homens que de fato venham a ser salvos; aqueles que se salvam só se salvam porque Deus o quer. — O S. Doutor ilustra esta interpretação mediante a seguinte imagem: dado que numa determinada aldeia só haja um mestre de escola, diz-se que todos os habitantes da aldeia recebem dele a sua instrução; é verdade que nem todos vão à escola, mas o fato é que os que vão à escola e aprendem letras só as aprendem por intermédio de tal mestre... Ora, de modo semelhante, conforme S. Agostinho, dir-se-ia que Deus quer salvar todos os homens, não porque de fato todos se salvem, mas porque os que se salvam, só se salvam por vontade de Deus; cf. De praedestin. sanct. 8,14;
c) explicação pedagógica: Na verdade, São Paulo apenas teria intencionado dizer: Deus quer que nós queiramos a salvação de todos os homens. Cf. de corrept. et gratia 15,47.
 
S. Agostinho só propôs tais sentenças à guisa de hipóteses e nos últimos escritos de sua vida; visava, com isso, reprimir o otimismo herético dos pelagianos, que atribuíam à natureza humana plena capacidade para se salvar por si mesma, sem o auxílio da graça divina. O S. Doutor, porém, nunca retratou a sentença clássica, que ele mesmo adotara em seus escritos anteriores, sentença segundo a qual a salvação é oferecida por Deus a todos os homens sem exceção. Consequentemente, não se dará grande peso a alguma das hipóteses acima recenseadas.
 
3. Declarações do magistério eclesiástico
 
Não se poderia encerrar a presente explanação sem se citarem algumas importantes afirmações de concílios e Sumos Pontífices... Darão a ver melhor como a Santa Igreja sempre repeliu qualquer concepção pessimista a respeito da salvação eterna, afirmando que só se perdem os homens que livremente resistem à graça divina. Eis os textos que mais interessam ao estudioso da questão:
1) O símbolo niceno-constantinopolitano no séc. IV professa: «O Filho de Deus.... por causa de nós, homens, e da nossa salvação, desceu dos céus... também foi crucificado em nosso favor» (Den- zinger, Enchiridion 86).
2) O concilio regional de Aries (475) promulgou uma carta assinada por doze bispos, a qual, entre outras teses, condenava as seguintes: «Aquele que perece, não recebeu os meios para se salvar» (can. 2); «Cristo não morreu por todos, nem quer que todos os homens se salvem» (cân. 6).
3) O concilio regional de Quierzy (853) teve que tomar posição frente a Godescalco, heresiarca segundo o qual Deus desde toda a eternidade predestinou os réprobos para a condenação eterna. Eis como se pronunciaram os Padres conciliares:
 
«Deus Todo-Poderoso quer que todos os homens, sem exceção, sejam salvos. Se certos dentre eles se salvam, isto se faz por dom d'Aquêle que salva; se, porém, certos perecem, isto acontece por culpa dos que perecem» (cân. 3);
 
«Não há, não houve, nem haverá jamais algum homem, do qual Cristo Jesus, Nosso Senhor, não tenha tomado a natureza. Da mesma forma, não há, não houve, nem haverá jamais homem por quem Ele não tenha sofrido, se bem que nem todos se beneficiem do resgate mediante o mistério de sua Paixão. O fato de que nem todos se beneficiam do resgate mediante o mistério de sua Paixão, não afeta de modo algum a grandeza e a abundância do preço, mas deve-se unicamente à atitude de quem não tem fé ou de quem não possui a fé que age pela caridade. O cálice da salvação humana, preparado para a nossa fraqueza pelo poder divino, contém o necessário para aproveitar a todos; mas, se alguém não o beber, não será por ele curado» (cân. 4).
 
4) Em 855 o concilio de Valença (França) afirmava:
«Ninguém é condenado por um juízo prévio de Deus, mas, sim, porque o mereceu mediante a sua própria iniquidade. Os maus, portanto, perecem não porque não puderam ser bons, mas porque não o quiseram e por sua culpa permaneceram na massa condenada em consequência do seu demérito original ou mesmo atual» (cân. 2).
 
«Reprovamos com horror aqueles que creem nessa monstruosidade, a saber: que alguns tenham sido predestinados ao mal pela potência divina... de tal sorte que não possam ser senão maus...» (cân 3).
 
5) Em 1547, o concilio ecumênico de Trento repetia palavras de S. Agostinho assim concebidas:
 
«Deus não preceitua coisas impossíveis; sempre que preceitua algo, Ele exorta o homem a fazer o que esteja em seu alcance, e a pedir o que ultrapasse esse seu alcance» (Denzinger, ob. cit. 804).
 
6) Em 1653, o Papa Inocêncio X condenava, entre outras proposições de Cornélio Jansênio, a seguinte:
 
«É semipelagiano (isto é, herético) dizer que Jesus Cristo morreu ou que derramou o seu sangue por todos os homens» (Denzinger 1096).
 
Essa proposição, interpretada no sentido de que Cristo só morreu pelos predestinados, foi tida como ímpia, blasfematória, injuriosa, ofensiva à bondade divina e herética.
 
7) Em 1690 Alexandre VIII anatematizava mais as seguintes sentenças jansenistas:
«Cristo se ofereceu a Deus Pai em sacrifício por nós, não pelos escolhidos apenas, mas também por todos os fiéis, e somente por estes» (Denzinger 1294).
 
«Os pagãos, os judeus, os hereges e outros homens semelhantes não recebem influxo algum de Jesus Cristo; donde deduzirás que sua vontade está destituída de todos os recursos para se impor, assim como de toda graça suficiente» (Denzinger 1295).
 
Os teólogos modernos têm estendido os seus estudos aos mais variados aspectos do problema: salvação dos pecadores obstinados, dos apóstatas, dos pagãos, das crianças falecidas sem batismo, etc. Concordam em afirmar que Deus quer a salvação de todos, concedendo a cada indivíduo as graças suficientes para isso; divergem, porém, entre si, ao tentarem indicar o modo como o Senhor distribui suas graças; em última análise, o motivo dessa divergência acidental é a soberania do comportamento divino, cujas sábias normas o homem jamais poderá discernir cabalmente.
 
Após quanto foi até aqui ponderado, o cristão fará consequentemente um ato de incondicional entrega às disposições da Providência Divina, que certamente tudo dirige para a santificação dos fiéis. O discípulo de Cristo procurará viver dessa certeza, sabendo que cada um de seus atos o pode e deve encaminhar para a vida eterna. E deixará de lado questões sutis, que só servem para desviar dos verdadeiros valores a atenção dos homens curiosos !
 

Criação ou Evolução?

Escrito por Dom Estêvão Bettencourt: Revista Pergunte e responderemos.

A questão levanta o problema complexo da origem do homem, problema que muitas vezes é formulado no seguinte dilema : «Criação ou Evolução ?». Ora a questão assim expressa está mal concebida. As dificuldades em grande parte se esvanecem desde que as formulemos em termos exatos. É o que tentaremos fazer abaixo, ao explanarmos a vida e a doutrina de Charles Darwin.
 
1. Biografia e pensamento de Darwin
 
1.1. Charles Robert Darwin nasceu em Shrewbury aos 12 de fevereiro de 1809. Desde cedo revelou grande interesse pela natureza; seus passatempos prediletos eram os de colecionar minerais, observar flores. capturar insetos e pássaros, e caçar em geral; nos anos de Ginásio, mostrou não ter memória para os versos de Homero e Virgílio, mas, sim, um pendão positivo para a Geometria e a Química, o que lhe valeu, como referem os biógrafos, a alcunha de «Gás».
 
Começou estudos de medicina em Edimburgo (1825-27). O genitor de Charles, porém, desejando que este se tornasse ministro da Igreja Anglicana, encaminhou-o para o Christ’s College de Cambridge; contudo o jovem não perseverou nos estudos eclesiásticos; voltou, ao contrário, a dedicar-se à História Natural e à Geologia, levando sempre conduta de vida assaz libertina.
 
De 1831 a 1836 realizou sobre a nave «Beagle» uma viagem ao longo do litoral da América do Sul e através do Oceano Índico, viagem que havia de marcar decisivamente o resto de sua vida, pois Darwin então observou e colheu os muitos e variados dados de flora e fauna necessários para arquitetar suas futuras teorias. De volta à Inglaterra, publicou o diário desse roteiro com o título «Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries visited during the voyage of H.M.S. Beagle» (Londres 1839).
 
Em 1842 recolheu-se à aldeia de Donn, onde prosseguiu incansàvelmente até a morte (19 de abril de 1882) os seus estudos teóricos e práticos; publicou várias obras, das quais a mais famosa ficou sendo «On the Origin of Species by mean of Natural Selection» (Londres 1859; 6a. ed. em 1882).
 
Os 1250 exemplares da primeira edição desse livro venderam-se todos num só dia (24 de novembro de 1859). Ouviram-se naturalmente «prós» e «contras»: Adam Sedgwick, por exemplo, antigo professor de Darwin, julgou encontrar na obra «partes totalmente falsas e dolorosamente maliciosas»; Sir John Herschel, cientista e filósofo, qualificou-a de «Lei da Confusão». Outros grandes vultos, porém, como os de Hooker, Lyell e Wallace, deram pleno apoio à argumentação de Darwin.
 
1.2. A teoria do transformismo já fôra lançada em 1809 pelo cientista francês Lamarck, o qual admitia o aparecimento da vida por geração espontânea e o aperfeiçoamento dos seres vivos por efeito tanto de um poder evolutivo intrínseco como por influência do ambiente. Darwin, após a sua viagem, já não alimentava dúvidas sobre o fato da evolução; a sua atenção voltava-se principalmente para o modo como as espécies se transformam. A explicação lhe foi sugerida pelo processo de seleção praticada pelos criadores de animais domésticos: (pombos, bois, cães, cavalos...) para obter tipos ou raças cada vez mais úteis ao homem: Darwin julgou que a natureza, por sua vez, empreende gigantesco processo de seleção, extensivo a todos os viventes. Levando em conta outrossim a recém- -formulada lei de Malthus (1798) segundo a qual os meios de subsistência não crescem na proporção do aumento das populações, Darwin admitiu a luta de todos os seres em prol da sua subsistência; nessa luta devem perecer multidões numerosas, a fim de não se esgotarem os recursos da terra. Pois bem; perecem naturalmente os indivíduos mais fracos, ficando apenas aqueles que estejam adaptados às árduas circunstâncias do ambiente de vida; a necessidade de se adaptar terá aprimorado, nos animais e vegetais primitivos, as formas variantes mais adequadas, formas variantes que produziram não somente novas raças, mas também novas espécies de viventes. Na obra «The Descent of Man», Darwin considerava até mesmo o gênero humano como resultante do desenvolvimento de animais inferiores: as faculdades intelectuais, a linguagem, o senso moral e as disposições religiosas do tipo humano não seriam senão modalidades biológicas de um .vivente primitivo, modalidades que, em virtude de sua utilidade, se foram conservando até hoje! A existência, no homem, do que se chama «o espírito», não seria senão um fenômeno biológico ou o resultado do processo de adaptação ao ambiente. O cientista inglês não negava que as espécies nos parecem hoje em dia estáveis e subtraídas à evolução, embora ainda se imponha a luta pela vida; explicava, porém, que tal aparência é ilusória, devendo-se exclusivamente à lentidão das transformações, que de fato continuam a se dar.
 
O principio segundo o qual a necessidade de sobreviver provoca a formação de órgãos adequados levava Darwin a explicar por esse modo o aparecimento mesmo dos órgãos mais complexos do corpo humano. A respeito do olho, porém, o cientista inglês experimentou certa hesitação, que ele conseguiu finalmente vencer; eis o que se lê em uma de suas cartas: «Até agora o olho provoca-me arrepios; mas, ao pensar nas belas gradações conhecidas, minha razão me diz que é preciso dominar o espanto» (Vida e correspondência t. II pág. 124).
 
Em outro episódio de sua correspondência, Darwin reconhecia que a lei da seleção natural, fundamento de toda a sua teoria, não passava de mera hipótese de trabalho, visto carecer de provas devidamente claras:
 
«A crença na seleção natural deve hoje fundar-se inteiramente sobre considerações de ordem geral. Quando descemos a particulares, podemos provar que nenhuma espécie mudou ou (com outras palavras) não podemos provar que uma só espécie tenha mudado; também não podemos provar que as mudanças pressupostas sejam úteis, tese que constitui o fundamento da teoria» (carta a Bentham 22 de maio de 1863).
 
1.3. É esta, em suma, a teoria evolucionista de Darwin. Como se vê, caracteriza-se por sua índole mecanicista ou alheia a todo finalismo. O famoso naturalista não deu lugar em suas elucubrações à ação de uma Providência Divina que dirija soberanamente todos os seres, fazendo que as mudanças entre as criaturas tenham seu sentido e convirjam para a realização de um plano sábio e grandioso. Consequentemente, o autor de «The Descent of Man» reconhecia : «Não ignoro que muitos rejeitarão como altamente irreligiosas as conclusões a que chegamos nesta obra» (trad. franc. Paris 645).
 
Na verdade, Darwin foi aos poucos perdendo o senso religioso de sua juventude, chegando no fim da vida a flutuar entre o deísmo (reconhecimento de um Deus que não interfere senão vagamente no curso deste mundo) e o agnosticismo. Na edição definitiva da obra sobre «A origem das espécies» (1882) ele ainda falava do «Criador»; afirmava outrossim : «Julgo que minhas concepções não são necessàriamente ateias» (Vida e correspondência, t. n pág. 175). Reconhecia ademais que o acaso não explica este mundo. O fato, porém, é que qualquer afirmação da existência de Deus, logicamente exigida pela observação da natureza, nele era minada pela dúvida fundamental: Será que as convicções da inteligência humana, oriunda do psiquismo dos animais inferiores, têm algum valor e atingem a realidade objetiva ?
 
Assim, por exemplo, escrevia Darwin a um amigo em 1881:
«Exprimiste minha convicção íntima,... a saber: o universo não é o resultado do acaso. Mas a dúvida me assalta sempre, e pergunto-me se as convicções do homem, que se desenvolveu do espírito de animais inferiores, têm algum valor, de sorte que nelas possamos de algum modo confiar» (Vida e correspondência, t. I 368).
 
Apenas de passagem, antecipando o que mais adiante se frisará melhor, note-se que a sã Filosofia rejeita a expressão «espírito de animais inferiores». Nos irracionais não há espírito: cf. «P. R.» 5/1958, qu. 1.
 
Em sua autobiografia, redigida em 1876, Darwin se pronunciava de modo análogo, após haver criticado o argumento em favor da existência de Deus derivado da convicção íntima da maioria dos homens:
 
«Impressiona-me por seu peso... ainda outro motivo de crer na existência de Deus. Tal motivo é a extrema dificuldade ou, antes, a impossibilidade de conceber o universo prodigioso e imenso, em particular o homem, com sua faculdade de se referir ao passado e de considerar o futuro, como o resultado de um destino ou de uma cega necessidade. Refletindo, sinto-me levado a admitir uma Causa primeira, dotada de espírito inteligente, análogo sob certos aspectos ao espírito do homem; mereço então ser chamado deísta. Tal conclusão, aliás, estava fortemente arraigada em meu espírito, enquanto me posso lembrar, na época em que escrevi ‘A origem das espécies’; foi depois desse período que tal convicção se debilitou muito gradativamente, e com várias hesitações. Uma dúvida, porém, surge em mim: o espírito do homem, que, segundo me parece, não era a princípio mais desenvolvido do que o espírito de animais inferiores, merecerá confiança quando ele deduz tão importantes conclusões?» (Vida e correspondência, t. I 363s).
 
Enfim, parece que, solapado por sua própria teoria evolucionista, Darwin perdeu cada vez mais a noção de um Deus Bom e Providente, para cair no quase completo agnosticismo:
 
«Nas minhas mais graves oscilações, jamais cheguei ao ateísmo no sentido próprio da palavra, isto é, nunca neguei a existência de Deus. Creio que de modo geral, na medida em que vou envelhecendo, a descrição mais exata do meu estado de ânimo é a do agnóstico» (Correspondência, trad. franc. Paris 1888, pág. 354).
 
1.4. O varão cujo pensamento fica assim delineado, tornou-se no setor da biologia empírica um dos maiores vultos do século passado ; chamando a atenção para o fator «evolução», inegàvelmente abriu novos horizontes para muitas pesquisas científicas (no setor da etnologia, da sociologia, da economia, etc.). A figura do naturalista inglês foi realçada em 1959, quando se celebrou o primeiro centenário da publicação da obra «Sobre a origem das espécies». Fica, porém, no espírito de muitos observadores uma dúvida assim concebida: pode alguém ser evolucionista sem cair, como Darwin, no agnosticismo ou mesmo no materialismo puro ? Se a formação das espécies se explica por evolução, onde fica a ideia de um Deus Criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis ? Não terão razão os que propõem o dilema: «Ou Criação e crença em Deus ou Evolução e renegação de Deus ?».
É a tais questões que vamos dedicar o parágrafo seguinte.
 
2. Criação ou evolução ?
 
2.1. O dilema acima formulado é inconsistente, pois os dois termos não se excluem mutuamente.
 
Com efeito. Que se entende por «criação»? — Criação é o ato de dar existência a um ser a partir do nada.
E que se entende por «evolução»? — Evolução não é senão o desenvolvimento de matéria preexistente que tende a formas de existência cada vez mais perfeitas (melhor adaptadas ao ambiente).
 
Ora o fato de que criação e evolução não se excluem reciprocamente se prova pela observação seguinte: quem fala de matéria em evolução, tem que explicar donde provém essa matéria.
 
Se diz que está eternamente, ou sem princípio, em evolução, afirma algo de impossível ou, mais precisamente, algo que a ciência da termodinâmica rejeita: esta ensina, sim, que o movimento do universo tende a um estado de equilíbrio ou de repouso; ora, se tende ao repouso, começou a partir do não repouso; o movimento, portanto, teve princípio e terá fim; o nosso universo, se não tivesse começado a se mover em época relativamente recente, estaria agora em estado de equilíbrio ou de imobilidade. Donde se vê que a matéria em evolução não se explica por si mesma ; ao contrário, ela supõe um Ser absoluto que lhe tenha dado a existência a partir do nada e o seu respectivo movimento. Esse Ser absoluto é o Criador, Deus, sem dúvida alguma diverso da matéria. Cf. «P.R.» 6/1957, qu. 1.
 
Em última análise, pois, criação e evolução não se excluem. Quem é criacionista, pode ser também evolucionista, e vice-versa.
 
2.2. Faz-se mister, porém, examinarmos de mais perto em que termos se dá a conciliação das duas posições.
 
Para explicar o mundo presente, requerem-se naturalmente tantos atos criadores de Deus ou tantas produções a partir do nada quantos são os tipos de criaturas irredutíveis um ao outro. Ora, na verdade dois são os tipos de criaturas dos quais um não se pode derivar do outro: a matéria e o espírito. — A matéria pode ser inanimada ou animada, animada por vida vegetativa apenas ou por vida vegetativa e sensitiva. Quanto ao espírito, ele é sempre animado, e animado por vida intelectiva. Cf. «P.R.» 7/1958, qu. 1.
É o que em esquema assim se pode reproduzir:
 
ESPÍRITO: animado por vida intelectiva
MATÉRIA
INANIMADA: mineral
ANIMADA: vegetal ou sensitiva (animal irracional)
 
Por conseguinte, as grandes etapas da origem do mundo e do homem assim se poderiam, a rigor, reconstituir:
 
Deus, por um ato criador (isto é, produzindo a partir do nada), terá dado existência à matéria primitiva (informe, em estado de nebulosa ou como a ciência julgar mais verossímil). A essa matéria inicial o Criador haverá comunicado as leis de seu sucessivo aperfeiçoamento (ou de sua evolução): a matéria então, sob o regime da Providência Divina, terá passado lentamente pelas transformações que os astrônomos e geólogos apontam, de modo a constituir o nosso sistema planetário e, dentro deste, o globo terrestre com suas rochas e seus minérios. A vida vegetativa e a vida sensitiva, sendo ambas derivadas de um principio material (que, conforme ensinam os filósofos, é eduzido da matéria e reabsorvido por esta), podem ter aparecido.por evolução da matéria, sem que, a rigor, tenham sido diretamente criadas a partir do nada. A matéria animada (o reino animal) se terá desenvolvido até chegar ao grau de complexidade e perfeição necessário para ser sede da vida espiritual ou intelectiva. Então, após tão longa fase de evolução, necessariamente Deus terá intervindo de novo mediante um ato criador (a rigor, poderia ser o segundo ato criador) para produzir a alma humana... Esta, em absoluto, não pode provir da matéria, pois, como foi demonstrado em «P. R.» 5/1958, qu. 1, ela é espiritual, e o espírito se distingue essencialmente do corpo.
 
Em poucas linhas, todo o plano se poderia assim resumir:
 
ATO CRIADOR 1: Produção da matéria primitiva
 
EVOLUÇÃO REGIDA PELA PROVIDÊNCIA:
Aparecimento dos minerais
Aparecimento dos vegetais
Aparecimento dos animais irracionais
 
ATO CRIADOR 2: Produção da alma humana.
 
Tornam-se oportunas algumas observações ao esquema acima:
 
a) Não há dúvida, toda e qualquer alma humana, no decorrer dos séculos, tem a mesma origem, ou seja, é diretamente criada por Deus.
 
b) Entre os dois atos criadores acima notados, é claro que Deus pode ter efetuado outros atos criadores. Não poucos estudiosos julgam que a vida, mesmo em seu grau ínfimo (que é o grau vegetativo), não se pode explicar por simples processo evolutivo da matéria (a vida vegetativa não poderia estar contida dentro da potencialidade da matéria, embora o seu princípio vital seja material) ; em tal caso, tornar-se-ia evidente que Deus interveio no mundo para criar os primeiros seres vivos. Há também quem julgue impossível a transição de urna espécie para outra nos reinos vegetativo e sensitivo; Deus então terá interferido com sua potência criadora tantas vezes quantas sejam necessárias para explicar as diversas espécies de viventes (note-se, porém, que é difícil delimitar as espécies e que as intervenções criadoras de Deus não são perceptíveis ao cientista, pois não deixam vestígios diretos nas camadas da terra).
 
Ao elaborar o esquema acima, o que nos interessa é unicamente mostrar o que, no mínimo, se deve admitir no tocante aos atos criadores de Deus; as duas intervenções apontadas bastam, a rigor, tanto aos olhos da Filosofia como aos da Revelação cristã, para explicar o mundo presente.
 
2.3. A quem pergunta se «o homem foi criado por Deus ou é proveniente do macaco» (é assim que popularmente se costuma formular a questão), dever-se-á necessàriamente responder mediante uma distinção:
 
- a alma humana, em toda e qualquer época, é criada por Deus;
- o corpo humano pode-se ter originado por evolução de corpo já animado; quem deve decidir e explicar a questão são os homens de ciência, pois a Revelação não tem doutrina própria sobre o assunto. Hoje em dia os estudiosos diriam que o corpo humano, caso seja produto de evolução, descende não dos macacos atuais, mas de um vivente mais primitivo, do qual tanto o homem como os símios modernos são oriundos.
 
3. Mais uma vez Darwin...
 
De quanto acaba de ser dito, percebe-se que o que a sã razão e a Religião têm a objetar a Darwin não é, de modo algum, o fato de ter ele apelado para a evolução a fim de explicar a origem das espécies. Duas outras são as dificuldades que o filósofo e o teólogo formulam contra o darwinismo:     
 
3.1. A índole mecanicista da evolução apregoada pelo cientista inglês. Não levando em conta o finalismo do universo (inanimado e animado), Darwin entrou em conflito com a noção de Deus, sábio e providente. Este se compraz, sim, em utilizar as criaturas e sua potência evolutiva para atingir fins grandiosos, mas nunca teria abandonado as criaturas a uma luta cega e mecânica em prol da própria subsistência.
 
O finalismo dos diversos processos evolutivos é hoje em dia geralmente admitido; quanto mais os estudiosos conhecem os seres vivos, tanto mais neles percebem a tendência a conservar sua estrutura característica, ao mesmo tempo que se adaptam às necessidades da luta pela vida; tenha-se em vista, por exemplo, o mimetismo de muitos organismos, que tomam colorido e formas acomodadas ao ambiente onde se acham (sabem até mesmo «imitar o morto»...);... os olhos com lentes bifocais no peixe tetroftalmo, que, vivendo à tona da água, precisa de ver tanto debaixo da água como fora desta;... as várias simbioses, como a da alga e do cogumelo;... a vasta escala de instintos nos animais, alguns dos quais visam acontecimentos posteriores à própria morte dos agentes (assim há borboletas que põem seus ovos dentro da planta necessária para alimentar a futura larva após o desaparecimento da borboleta mãe...);... a distribuição das folhas nos ramos de modo a se oferecerem à luz...
 
Verificando tais e outros fatos, muitos estudiosos modernos (católicos e não católicos) professam o evolucionismo, evolucionismo, porém, finalista (orientado por uma inteligência suprema, que parece ter deixado um vestígio de Si em cada ser vivo).
 
3.2. O sistema de Darwin é falho outrossim por não reconhecer a diferença entre espírito e matéria. Darwin mesmo foi vítima dessa posição, pois julgava consequentemente não poder atribuir grande valor às suas faculdades intelectivas, visto que as considerava quais meras excrescências do psiquismo do animal bruto ou irracional.
 
Em termos positivos, a distinção entre espírito e matéria já foi explanada em «P. R.» 5/1958, qu. 1.
 
Em conclusão: o que no século passado tornou o darwinismo infenso às escolas católicas, foram as idéias filosóficas com as quais o naturalista inglês e seus discípulos associaram as teses evolucionistas. Com o decorrer dos tempos, verificou-se que tal associação não é em absoluto necessária. Há distinção nítida entre darwinismo e evolucionismo, como foi evidenciado atrás; salva-se a doutrina da evolução biológica, sem que se renegue a Providência de Deus, que criou a matéria e o espírito e que tudo governa.
 
Não se poderia encerrar a presente resposta sem uma referência aos fascículos de «P. R.» nos quais são elucidadas as páginas da S. Escritura atinentes à origem do mundo e do homem. Veja-se:
 
«P. R.» 26/1960, qu. 4 (criação do mundo em seis dias?); «P. R.» 7/1958, qu. 1 (origem da vida);
«P. R.» 4/1957, qu. 1 (origem do primeiro homem e da primeira mulher);
«P. R.» 7/1957, qu. 2 (origem das raças humanas); P. R. 9/1958; qu. 1 (teoria de Teilhard de Chardin); «P. R.» 20/1959, qu. 4 (monogenismo ou poligenismo? Um ou vários casais na origem do gênero humano?).