terça-feira, 30 de abril de 2013

O Jesus do mundo e motivo da decadência do apostolado católico!

O Jesus do mundo

Jesus não é um hippie "paz e amor, bicho", nem um revolucionário politiqueiro. Isso são ídolos. Jesus é Deus, portanto, que o homem seja apenas aquilo que ele deve ser: um adorador!
Uma grande revista de circulação nacional estampava em sua capa, anos atrás, o rosto de Jesus rodeado por símbolos hippies, com a seguinte manchete: "Deus é pop". A reportagem tratava da espiritualidade juvenil e da maneira particular com que cada um se relacionava com o divino. A revista ainda fazia questão de enfatizar as peculiaridades desses novos movimentos, sobretudo as novidades, como altar em forma de prancha, uso de rock n'roll durante os cultos, grandes baladas "cristãs", etc.
O que a matéria reflete não é uma novidade na história. Pelo contrário, ao longo dos séculos o que mais se viu foi a tentativa de desmontar Jesus Cristo, tomando apenas partes de seu Evangelho em detrimento de outras, somente para saciar ou atender às próprias veleidades. Esses que querem esquartejar Jesus (como se não bastasse a Crucifixão), dizem aceitar o Amor, mas se esquecem que esse Amor não compactua com nenhuma forma de mal nem com o pecado. Esquecem-se que o Amor também significa compromisso consigo mesmo e com o próximo. Que a misericórdia também significa justiça. Enfim, escolhem as partes de Jesus que mais lhes convém, como se Ele estivesse exposto numa prateleira de mercado.

Essa tendência de se tomar a parte pelo todo, segundo o Papa Emérito Bento XVI no livro Jesus de Nazaré, ficou mais evidente a partir da década de 1950. Ela se reflete nas adaptações de Cristo às várias modalidades de culto facilmente encontradas hoje em dia e que acabam por revelar um dramático empobrecimento da fé cristã, devido a uma recusa à personalidade "exigente" e "comprometedora" do Jesus original.
Qual o motivo dessa recusa? A resposta pode ser encontrada nas palavras de São Paulo à comunidade dos Romanos: "Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram à criatura em vez do Criador, que é bendito pelos séculos" (Cf. Rm 1, 25). Colocaram-se acima do Criador e fizeram-se senhores do "bem" e do "mal". E é por isso que se faz necessário aos missionários do mundo corromper a verdadeira imagem do Salvador num garotão patético que aceita tudo pela "paz" e o "amor". A presença da Igreja no mundo é como a presença de uma mãe no quarto de um filho que aprontou. Ele sempre tentará convencê-la, seja por desculpas, seja por birras, a abonar suas traquinagens. Mas uma mãe que ama jamais o fará, quanto mais a Igreja!

Outra motivação para esta recusa pode ser encontrada nas teologias modernas que, na ânsia de "salvarem" Jesus das indagações científicas, concebem-No irreconhecível. Este mais representa um retrato ideológico que o próprio Verbo Encarnado. O patriarca de Veneza, Dom Francesco Moraglia, compara essa atitude a dos Discípulos de Emaús, pois são os teólogos que querem dizer para Cristo quem de fato Ele é:
"Vemos a imagem de uma certa teologia, mais desejosa do que iluminada, totalmente dedicada à árdua e improvável tentativa de salvar, através de suas próprias categorias, Jesus Cristo e a Sua Palavra. Mas, nesta imagem, somos representados nós mesmos, cada vez, com nossa programação pastoral, com nossos projetos e debates, à parte de uma verdadeira fé, pretendemos explicar a Jesus Cristo quem Ele é", Dom Francesco Moraglia.

Ora, não é o ser humano que diz a Jesus quem Ele é, mas é Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que diz quem é o ser humano. Adaptar Cristo a um estilo de vida não condizente à reta vivência cristã reflete um apego aos prazeres do mundo, no qual se faz mais importante o vício que o Cristo crucificado. Não, Jesus não é um hippie "paz e amor, bicho", nem um revolucionário politiqueiro. Isso são ídolos. Jesus é Deus, portanto, que o homem seja apenas aquilo que ele deve ser: um adorador!
O motivo da decadência do apostolado católico

A enxurrada de más notícias divulgadas pelos jornais e tantos outros meios de comunicação faz o católico, muitas vezes, se sentir impotente diante da maldade. É quase comum uma reação de desânimo, letargia e desespero. Ainda mais quando o ambiente em que se vive não está enraizado naquela fé viva, o fundamento da esperança e a certeza do que não se vê (Cf. Hb 11, 1), da qual falava São Paulo. Não obstante, outra atitude igualmente motivada pela falta de fé na graça divina é a do ativismo pessoal. São os auto-suficientes, os que se acham bons demais para perderem algumas horas na Igreja rezando.

Provavelmente, muitos já escutaram de algum amigo, parente ou mesmo dentro da Igreja que a oração não passa de perda de tempo. Qual o propósito de rezar enquanto tantos sofrem, agonizam e passam fome? Não seria melhor alimentá-los, retirá-los da rua, ao invés de ficar diante um crucifixo repetindo palavras? Ora, não é preciso muito esforço para perceber a mediocridade desse tipo de pensamento. Uma pessoa que defenda tamanha estupidez tem uma visão muito míope sobre apostolado cristão e caridade. É evidente de que se trata de um indivíduo sem fé e materialista, mesmo que não perceba.
É óbvio que aqui não se defende o fideísmo de Lutero ou qualquer heresia do gênero. Não! A Igreja sabe muito bem da necessidade de se esforçar para entrar pela porta estreita. Sabe que o verdadeiro amor gera frutos e boas obras, mas essas boas obras só nascem de um diálogo profundo e amigável com Deus, um diálogo radicado na cruz. Com efeito, "toda árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo" (Cf. Mt 7, 19). Fica claro, assim, que tanto a fé sem obras quanto as obras sem fé são coisas abomináveis.
Um livro muito importante para a espiritualidade cristã, chamado "A alma de todo apostolado", fez questão de abordar esse tema em um de seus capítulos. A obra foi escrita por Dom Chautard, abade cisterciense, e foi o livro de cabeceira do Papa São Pio X.
"Se quereis que Deus abençõe e torne fecundo o vosso apostolado, empreendido para a sua glória, impregnai-vos bem do espírito de Jesus Cristo, procurando adquirir uma intensa vida interior. Para este fim, nao vos posso indicar melhor guia do que "A alma de todo o apostolado" de Dom Chautard, abade cisterciense. Recomendo-vos, calorosamente, esta obra, que estimo particularmente, e da qual fiz o meu próprio livro de cabeceira." (Palavras de São Pio X, durante a visita ad limina dos bispos do Canadá, em 1914).
No capítulo II, o abade recorda um ensinamento de um cardeal da época sobre a "heresia das obras". "Com esta expressão", diz Dom Chautard, o cardeal estigmatizava "a aberração de um apóstolo que, esquecendo‑se do seu papel secundário e subordinado"- ou seja, que Cristo é o protagonista, não ele - "unicamente esperasse o bom êxito do seu apostolado, da sua atividade pessoal e dos seus talentos".
O abade lembra Cristo como o autor e princípio da vida. Desse modo, os apóstolos jamais podem perder de vista a seguinte verdade: "que, para participar dessa vida e comunicá‑la aos outros, hão mister de ser enxertados no Homem‑Deus". Os discípulos de Jesus devem se reconhecer como "modestos canais" da graça do Senhor, não como seus autores. Por conseguinte, aqueles que menosprezam Deus e a oração caem em terrível desgraça, nas palavras de Dom Chautard, numa "atividade febril". Ademais, todas as suas obras estão fadadas ao fracasso, pois não foram edificadas na rocha, mas na areia:
"Salvo em tudo o que opera sobre as almas ex opere operato, Deus deve ao Redentor o subtrair ao apóstolo, cheio de arrogância, as suas melhores bênçãos para reservá‑las ao ramo que humildemente reconhece que somente pode haurir a sua seiva no tronco divino. De outra sorte, se abençoasse com resultados profundos e duradouros uma atividade envenenada por esse vírus a que chamamos heresia das obras, Deus dava mostras de animar essa desordem e permitir seu contágio".
Palavras fortes e, ao mesmo tempo, tão atuais. Como não reconhecê-las em tantos católicos que enxergam a fé apenas como um pressuposto, como dizia Bento XVI na Carta Apostólica Porta Fidei, e se lançam às obras negociando princípios que sob hipótese alguma poderiam ser negociados? Como não enxergá-las em tantos discursos ideológicos que propõem reflexões totalmente absurdas e contrárias à sã doutrina a pretexto de um mundo melhor, de um mundo onde todos sejam "iguais"? Se um apostolado vai mal, pode-se dizer quase com certeza divina, que se trata de um apostolado sem Deus ou que já O esqueceu. Ou se muda isso, ou corre-se o risco de transformar a Igreja naquilo que o Santo Padre Francisco denunciou tão sabiamente na sua primeira homilia, "numa ONG piedosa".


Por: Equipe Christo Nihil Praeponere, tirado site pradrepauloricardo.org

 

sábado, 27 de abril de 2013

A violência no Antigo Testamento

A revelação do Deus-Amor é progressiva

A história de Israel é a história de uma educação. Por fases, Deus faz seu povo sair da violência em nome de Deus, até o dia em que Jesus diz: “Bem-aventurados os mansos”.
A redação da Bíblia se estende aos últimos séculos antes de Jesus Cristo. Mas a história da qual ela dá testemunho se estende a dois milênios. Quando se fala da Bíblia, é preciso conhecer em que momento da Revelação ela se situa. No começo da Bíblia, os primeiros capítulos do livro do Gênesis falam da criação e da origem da humanidade: a violência não tem sua origem em Deus.
É um fato: muitas páginas da Bíblia são extremamente violentas. Esta violência é um dos obstáculos para a leitura do Antigo Testamento. Também alimenta a rejeição às religiões, em particular às monoteístas: a Bíblia seria um manual de fanatismo que o cristianismo e o islamismo teriam herdado.
De onde vem a violência, segundo a Escritura? Ela não vem de Deus. A criação é um ato de poder, não de violência. O homem tem como missão, entre outras, estabelecer a ordem neste mundo inacabado, imperfeito. Seu domínio sobre o mundo criado tem por objetivo que a paz reine.
Mas a serpente, o Maligno sugere ao homem que, comendo do fruto proibido, será capaz de rivalizar com Deus. Marido e mulher não se ajudam na hora de resistir à tentação. Ao contrário, um arrasta o outro e se deixam enganar: é o pecado.
A primeira consequência do pecado é a violência. Em meio à rivalidade, Caim mata Abel. Deus quer acabar com o ciclo infernal da violência e protege Caim. Mas a violência continua.
E chega a tal ponto que, como diz a Escritura, Deus se arrepende de ter criado o homem. “A terra está repleta de violência por causa dos homens”, diz a Noé. Que a humanidade tenha um novo começo, a partir do único justo que Deus encontra: Noé e sua família! O dilúvio engole pecadores e pecados. Deus não se vinga, mas não pode deixar indefinidamente que se propaguem o mal, a injustiça, a violência, o pecado.
No final, como sinal de uma nova aliança com a humanidade, Deus faz surgir no céu um arco que reúne a humanidade de um extremo ao outro da Terra. O arco, arma de guerra, se torna um símbolo da paz; anuncia um investimento ainda mais radical: a morte de Jesus na cruz como fonte de salvação.
Certamente, esses primeiros capítulos da Bíblia utilizam uma linguagem de imagens. Mas só as mentes superficiais encararão isso com superficialidade. Os textos esclarecem a situação do homem, de todos os homens, antes de que se inicie, com Abraão, a história de Israel.
Para dar-se a conhecer aos homens, Deus escolheu um homem – Abraão – e sua descendência. Quando os israelitas se tornam numerosos no Egito, o faraó é violento com eles, especialmente mandando matar todos os recém-nascidos do sexo masculino. Deus sai em defesa do seu povo: isso é justiça.
Israel não nasceu na violência. Nasceu de um chamado: Deus chama Abraão e o convida a sair do seu país, transladando-se, como nômade, com sua família e seu gado. Ele mesmo é um homem de paz. Intercede diante de Deus a favor de Sodoma, cidade gravemente pecadora. Em caso de conflito pela utilização de um poço em Bersebá, chega a uma solução com o seu rival; faz inclusive uma aliança com ele. É saudado por Melquisedec, rei de Shalem (Jerusalém), palavra que significa “paz”.
Mas se Abraão é mais pacífico, o que dizer de Deus? Deus impediu que Abraão lhe oferecesse seu filho em sacrifício e esta proibição permanecerá.
Em Jerusalém, o vale de Geena está amaldiçoado porque reis ímpios acreditaram atrair os favores divinos sacrificando seus filhos e filhas. Deus condena isso, no profeta Jeremias: “Uma coisa dessas eu nunca mandei fazer!” (Jr 7, 31).
Mas Deus é também aquele que faz chover fogo sobre Sodoma, quem destrói a cidade e sua população. O cristão recorda que, no Evangelho, dois discípulos queriam, um dia, fazer descer fogo do céu sobre um povo que se rejeitou a recebê-los e Jesus os repreende. Algumas versões acrescentam: “Vocês não sabem que espírito os anima”.
Observando estas duas cenas, é grande a tentação de opor Antigo e Novo Testamentos e de rejeitar o Antigo, que apresentaria o rosto de Deus mais odioso que desejável. No entanto, ainda quando destrói Sodoma, Deus não cede à arbitrariedade ou ao exagero: é toda a cidade de Sodoma que havia pecado, faltando a um dever humano fundamental, a hospitalidade.
Deus não é violento: é justo e protege.
Alguns séculos depois, no Egito, os descendentes de Abraão sofrem violência: são explorados e ameaçados de extermínio. Começa então outra fase da história sagrada. Deus vai salvar os israelitas “com mão forte e braço estendido”. Sob a condução de Moisés, os faz sair do Egito. Defende-os quando são atacados. E os faz entrar na Terra Prometida.
Em um mundo de violência, muito frequentemente o povo de Israel se encontra em estado de guerra. O que está em jogo é a sua independência nacional, mas também religiosa.
Deus escolheu, portanto, um povo que nunca será um império muito poderoso, mas que entra em combate com os poderes que o cercam. Estamos acostumados, pelo menos em nossa terra, a longos períodos de paz com os nossos vizinhos. Mas isso não era assim: a guerra era uma atividade cotidiana. Pensemos na Idade Média: na medida em que Deus se confia a este povo, as guerras de Israel têm um objetivo sagrado. “Deus Todo-Poderoso” é o Senhor dos exércitos celestiais, isto é, dos inúmeros astros, mas também dos exércitos de Israel que defendem a sua independência religiosa.
Mistura-se também com outros povos, correndo o risco de adotar também os seus deuses. Em alguns casos, este desejo de pureza religiosa levou ao aniquilamento de algumas populações. Mas parece que este tipo de conduta, pouco frequente, teve causas muito mais mundanas.
Com relação às instituições de Israel, preveem a pena de morte para um determinado número de faltas, mas se trata tanto de faltas sociais, como o homicídio e o adultério, como de faltas propriamente religiosas: por exemplo, quando alguém entrega seus filhos aos ídolos. Porém, tudo deve ser feito segundo o direito, sobre a base de muitos testemunhos, e o acusado deve ter a possibilidade de se defender. A “lei do talião” (“olho por olho, dente por dente”) não é um convite à vingança, mas uma limitação do castigo.
A violência, no final, só gera vítimas. Ela não será vencida com uma violência oposta. Se a violência vem do coração do homem, é o coração do homem que tem de curá-la. A violência sofrida deve se transformar em oferenda. É isso que Cristo fez. Mas inclusive depois de vinte séculos de educação por parte de Deus, nenhum contemporâneo de Jesus o entendeu. E nós, já o entendemos?
Em sua história, Israel foi mais frequentemente vítima da violência que autor dela. Pelos profetas, Deus faz seu povo descobrir progressivamente que a violência é certamente uma rua sem saída e que inclusive o exercício da força não porá fim ao pecado que está no homem. O importante é a conversão dos corações. A mudança total de perspectivas é anunciada pelas profecias do Servo de Deus: “Meu servo justificará muitos e suportará as culpas deles” (Is 53,11). O cristão reconhece em Jesus Cristo a realização desta profecia.
A história da violência na Bíblia é a história de uma educação. É inútil negar a presença da violência em nossos corações, na nossa sociedade, no nosso mundo. É preciso, em primeiro lugar, regulá-la, impedindo que invada todo o campo. Também é preciso saber que as regressões são possíveis: o século XX foi um século de extrema violência.
Se existe ódio, ele se dirige a todas as formas do mal: a rejeição de Deus, a falsidade, a injustiça, o desprezo dos outros, da sua dignidade, dos seus bens. É preciso odiar o pecado e amar o pecador. É o que o autor do salmo citado não podia entender: “Com grande ódio eu os odeio”; é o que Jesus realizou perfeitamente e que seus adversários não entenderam.
E nós, já entendemos isso?

Autor:

Dom Jacques Perrier, bispo emérito de Tarbes et Lourdes (França).

sábado, 6 de abril de 2013

Em memória do Salvador

Escrito por Dom Henrique: blog Visão Cristã.

Salmo 132/131
 
Neste Salmo, também ele um Cântico das Subidas, um Salmo Gradual, o peregrino recorda ao Deus de Israel um dado capital no caminho de fé do Povo santo: a promessa que o Eterno fez a Davi e à sua Casa, isto é, à sua dinastia. Essa promessa feita ao rei não é uma realidade meramente individual, em benefício de Davi e de sua prosperidade, mas trata-se de uma bênção para todo o povo de Israel. É assim: nas Escrituras Santas, na história do Povo de Deus, nenhuma promessa, nenhum dom, tem um sentido e um escopo somente pessoais. Todos os dons do Altíssimo, por mais pessoais que sejam, são para a realização do plano salvífico de Deus e, portanto, para o salvação e a vida de todos.
“Lembra-Te, Senhor de Davi,
de todas as suas fadigas,
como ele jurou ao Senhor,
ao Poderoso de Jacó fez um voto:
'Não entrarei sob o teto de minha casa,
não subirei ao leito do meu repouso,
não darei sono aos meus olhos,
nem descanso às minhas pálpebras,
enquanto não achar um lugar para o Senhor,
uma morada pera o Poderoso de Jacó”.
O texto começa com o memorial: pede que o Senhor lembre, recorde. Na verdade, segundo a mentalidade da Sagrada Escritura, para Deus, recordar é conservar na existência. Quando Deus esquece, aquilo que por Ele foi esquecido deixa de existir, torna-se pobre nada, volta ao pó, à inexistência! O memorial, o recordar tornando realmente presente, é central na espiritualidade bíblica. Basta pensar na Páscoa judaica, que anualmente faz memorial do Êxodo do Egito e do memorial da Páscoa de Cristo. Assim como cada geração de Israel, ao fazer memorial da Páscoa judaica, deve se considerar tirada do Egito, ela própria, através de cada época, assim também nós, cristãos, ao celebrarmos a Páscoa do Senhor em cada Eucaristia – e de modo particular no solene rito anual – devem ter a consciência de que, pelo Cristo, em Cristo e por Cristo, passamos da velha situação de pecado e vamos, já nesta vida, sendo impregnados da vida eterna, que termos em plenitude na celebração final, na Páscoa da morte, quando, finalmente, passaremos, ou melhor, terminaremos de passar, deste mundo para o Pai. Cada Eucaristia, portanto, é memorial feito diante do Senhor: “Lembra-Te, Pai, do Teu Filho, que na noite em que foi entregue tomou o pão e o vinho e disse: 'É Meu Corpo, é Meu Sangue. Celebrando, pois, o memorial da morte e ressurreição do Teu Filho, nós Te oferecemos o Pão da vida e o Cálice da salvação!'”
“Lembra-Te, Senhor, de Davi!” - Israel e a Igreja renovam sempre este apelo: Israel a caminho para a Jerusalém terrestre; a Igreja, novo Israel, peregrinando para a Jerusalém celeste! Israel antigo, pensando no Davi do passado e esperando o Davi-Messias no futuro; a Igreja, recordando o Davi-Messias-Jesus que já veio e esperando Sua Manifestação final, plena de Glória, quando também o antigo Israel, surpreso, admirado e comovido, haverá de reconhecê-Lo e adorá-Lo como Messias e Filho e Senhor e Deus bendito pelos séculos! Na liturgia cristã, esta constante recordação de Jesus-Messias aparece de modo muito belo e incisivo ao término de cada oração dirigida ao senhor Deus de Israel: tudo suplicamos “por Nosso Senhor Jesus Cristo Vosso Filho na unidade do Espírito Santo”. Toda a vida da Igreja dá-se no memorial do Senhor, no nome do Senhor, confiando no mérito e na graça salvífica do Senhor nosso Jesus Cristo!
Não deixa de ser intrigante que Davi seja considerado um herói, que seja tão querido na consciência de Israel, a ponto de ser invocado como modelo de dedicação da Deus nesta subida... Mas, a subida – não esqueçamos – é precisamente para a Casa de Deus na Cidade de Davi - e, portanto, Cidade do Messias! Davi foi um homem violento. A própria Escritura atesta isto e Deus mesmo o afirma: “Derramaste muito sangue e fizeste grandes guerras” (1Cr 22,8); Davi foi adúltero, infiel a Deus e assassino: adulterou com Betsabéia e covardemente mandou matar seu esposo (cf. 2Sm 11). Como o Senhor Deus pode beneficiar com tantas graças um homem assim? Como pode, logo ele, ser o depositário da bênção messiânica, a ponto de o santo Messias ser um descendente seu? “Lembra-Te, Senhor, de Davi!” - impressionante! Pela lógica do politicamente correto, da nossa justiça humana, Deus ao recordar de Davi, seria para puni-lo, amaldiçoá-lo, eliminar sua lembrança da terra dos vivos! Mas não é assim com o Eterno: Ele não é, não será nunca refém da nossa lógica e do hipócrita e sufocante politicamente correto! O Senhor age com o Coração e perscruta o coração! Davi pecou, Davi errou, Davi, às vezes, foi de uma mesquinhez assustadora e, no entanto, era um homem sincero, de todo coração apaixonado pelo Senhor. Basta recordar quando Natã denunciou o seu pecado com Betsabéia. Imediatamente, sem fingir, sem se esconder, sem procurar desculpas esfarrapadas, o rei cai em si e exclama: “Pequei contra o Senhor!” (2Sm 12,1-13). Esse Davi nunca temeu colocar-se nu, despojado diante do Santo de Israel, como quando dançou diante da Arca e foi duramente recriminado por Micol: “Que bela figura fez hoje o rei de Israel, desnudando-se aos olhares das escravas dos seus servidores, como faria um bufão qualquer!” Davi, com uma humildade de criança em relação a Deus, afirma: “É diante do Senhor que eu danço! Diante do senhor eu vou pulando. Humilhar-me-ei ainda mais, ficarei rebaixado aos meus próprios olhos!” (cf. 2Sm 6,20-22). É este homem espontâneo para com o Senhor, humilde, que de verdade se reconhece pequeno, pecador, pobre, dependente diante do Altíssimo, é a ele que o Senhor amou e escolheu pela simplicidade do seu coração. É tocante a oração que o velho rei faz ao Senhor antes de partir deste mundo: “Eu sei, meu Deus, que Tu examinas os corações e Te comprazes com a sinceridade: foi de coração sincero que Te dediquei todas estas coisas!” (1Cr 29,17). Eis a lógica do Senhor, eis quem Lhe agrada, eis quem é grande aos Seus olhos: quem O ama, quem O procura, quem não pretende justificar-se diante Dele mascarando seu pecado, quem se reconhece pequeno e devedor, indigno de estar na Sua presença! - Recorda-Te, Senhor, de Davi! Recorda-Te do verdadeiro Davi, cravado na cruz por Teu amor! Por causa de Davi, Teu Servo, salva-nos, ó Santo de Israel!
O peregrino suplica ao Senhor que recorde do voto, da promessa que Davi Lhe fez: construir uma Casa para o Santo de Israel – precisamente para esta Casa os pés do Salmista se dirigem agora! Deus aceitou a intenção da oferta de Davi porque nascia da pureza, do amor, da sinceridade do seu coração. Mas, não esqueçamos: Davi é apenas uma profecia, uma figura, uma preparação: é o verdadeiro Davi, o Messias, quem preparará a Casa definitiva para o Senhor. Mas, aprofundemos.
Primeiramente, o Eterno deixa claro que não será Davi quem Lhe edificará uma Casa, mas seu filho, Salomão (SHaLoMoN, o pacífico, o portador do SHaLoM). Davi não foi homem de paz, mas um guerreiro. Pois bem: somente Salomão poderá construir o Templo do Altíssimo, lugar no qual o povo encontrará a paz, o shalom da comunhão com o seu Deus; assim também somente o verdadeiro Salomão, Aquele que é o Príncipe da Paz, o que dá o shalom definitivo, poderá construir o verdadeiro Templo, do qual o de pedra, de Jerusalém, era apenas anúncio e figura profética: “Destruí vós este templo e em três dias Eu o reerguerei” (Jo 2,18b). Podemos perguntar: que significam estas palavras de Jesus? O Templo de Jerusalém era o lugar do encontro do Senhor com o Seu povo, era expressão da aliança sagrada entre Israel e o seu Deus; era habitação da Glória do Eterno, simbolizada naquela nuvem de fumaça que impregnou o Lugar santo quando Salomão o dedicou a Deus (cf. 1Rs 8,10-12). Ora, pelas contínuas infidelidades de Israel e, sobretudo, pela não aceitação de Jesus como Messias, esse Templo já não teria mais razão de ser. O culto que ali era prestado estava se reduzindo a um culto meramente exterior, vazio de uma adoração que realmente brotasse do coração – precisamente como aquela que brotou do coração de Davi: “Foi de coração sincero que Te dediquei todas estas coisas!” (1Cr 22,8). Não sendo lugar do cultor sincero, da escuta humilde e obediente da Palavra do Eterno, o Templo estava sendo destruído no seu sentido profundo. Daí a frase de Jesus: “Estais destruindo este Templo? Podeis destruí-lo; ele é apenas uma figura! Agora destruís o Templo que é figura do Meu corpo, porque vós Me levareis a cruz, macerareis o Meu corpo. Estais fazendo com este Templo o que fareis com aquilo que ele simboliza: o Meu corpo. Mas, Eu reerguerei o verdadeiro Templo, do qual este, de pedra, é apenas um sinal profético!” Assim, o verdadeiro Templo, edificado pelo verdadeiro Salomão, é o próprio corpo morto e ressuscitado do Senhor. Este corpo ressuscitado, cheio da Glória do Espírito Santo, é o verdadeiro e definitivo “lugar” do encontro do homem com Deus, é o “lugar” da nossa paz, do eterno e definitivo shalom: “O castigo que havia de trazer-nos a paz caiu sobre Ele; sim, por Suas feridas fomos curados” (Is 53,5). O corpo morto e ressuscitado do Salvador é o lugar eterno e sacrossanto da nossa reconciliação: “Ele é a nossa paz: de ambos os povos – judeus e gentios – fez um só, suprimindo em Sua carne a inimizade (...) a fim de criar em Si mesmo um só Homem Novo, estabelecendo a paz (…) em um só Corpo, por meio da cruz” (Ef 2,14ss). Jesus, o verdadeiro Davi, oferecendo ao Pai com um coração puro o sacrifício de Sua própria existência humana cravada na cruz, preparou um lugar para o repouso do “Poderoso de Jacó”, e foi glorificado pelo Pai, tendo Seu corpo totalmente transfigurado em glória pela ação do Santo Espírito e, agora, é o lugar do encontro com o Deus Santo “em espírito e verdade” (Jo 4,24). Portanto, é no Corpo do Senhor que se encontra a verdadeira paz: Seu corpo no céu, Seu corpo que é a Igreja, Seu corpo que é a Eucaristia!
Também nós, unidos a Cristo, nos tornamos membros desse Corpo do Senhor e, portanto, também nós, templo santo de Deus (cf. 1Cor 6,15-20). Santo Agostinho nos previne: “Queres ser um lugar para o Senhor? Sê humilde, quieto, treme diante das palavras de Deus, e te tornarás aquilo que desejas ser”.